quarta-feira, 12 de junho de 2013

Xaimix

FERNANDO MORAIS GOMES


Julho de 1966.Mais um Verão na casa de Galamares, três horas desde Lisboa com a mobília atrás, o carocha preto rolando pela estrada de paralelepípedo rente aos pomares rasgados pelo eléctrico aberto, de onde furtivamente miúdos apanhavam nêsperas, pendurados no estribo. A escola acabara, as férias prometiam novas aventuras, enguias no rio, teatros na garagem, a velha Amália, a caseira da família, havia já aberto as janelas para sair a humidade.
O Verão chegava previsível para as famílias da capital a banhos e com toldo ao mês na praia. No café do Alcino, voltavam as habituais tertúlias, enquanto os mais novos deambulavam entre os jogos de matraquilhos ao “perde paga” e as músicas da moda, seleccionadas na jukebox que trazia a modernidade a Galamares para gáudio dos mais novos.
Ao Alcino, magro, óculos grossos, jeito para o negócio, nada escapava. Além da pensão à época, que explorava nas restantes divisões do café, vendia bebidas no bar do cineteatro, em dia de cinema ambulante, e em ano de Mundial de futebol apostara na compra duma televisão, das primeiras em Galamares, onde a troco de módicos dez tostões se podia ver ao vivo a magia do Pantera Negra contra a Coreia, e a epopeia dos magriços que assim infligiam novas Aljubarrotas, rematando, mágicos, com o pé que lhes vinha mais à mão. A ligação à Eurovisão nem sempre era fácil, mas como milagre lá surgia, ante palmas de alívio.
Galamares era um pequeno mundo. O salão, cinema ambulante de fim de semana, a cinco escudos por  dois filmes, Cinema Paraíso ritualizado na sala escura com a épica abertura dos filmes Castello Lopes, convidando ao silêncio sepulcral que antecedia a magia do Technicolor. Lá se viu o Spartacus, o Ben-Hur, os 12 Indomáveis Patifes, o Cantinflas ou o Fernandel; As nozes douradas da Leopoldina, triunfo do açúcar e receita secreta, as bolachas de manteiga com buraco ao meio, finas e únicas. Tudo corria sem pressas, apanhando pirilampos à noite, emboscando pequenos pássaros, sazonais vítimas de predadores de calções, alternando entre a fisga ou o visco traiçoeiro. E eram os rajás de pau, os palinos, a colecção de cromos. Um microcosmos pululante, de senhores doutores e seus meninos, homens do campo, veraneantes, transformando um lugarejo à beira da estrada numa miríade de pensões e quartos alugados, a apanhar ares de Galamares, os médicos aconselhavam, uma fauna de artistas e escritores invadindo a mansidão do local. José Gomes Ferreira escrevinhando no Alcino, Rui Grácio, Mário Dionísio e Barahona Fernandes, em casas próprias ou nas seis pensões improvisadas, águas quentes e frias a desfrutar dos “ares” de repente transformados em receita médica.
Porém, não havia Verão sem o Xaimix. Xaimix,o Homem Cérebro Electrónico, ilusionista, trapezista, artista andarilho, com os seus truques com cartas e moedas, que brotavam das orelhas perante o espanto de miúdos num tempo de tv a preto e branco e de um canal só.
Todos os anos, a esplanada do Alcino se animava de avós e netos, doutores e caseiros, para ver o grande Xaimix, Houdini daquele pequeno mundo de sonhos e ilusões, boquiabertos perante o desfiar dos truques, acompanhados pela virtuosa harmónica bocal do homem dos sete instrumentos, todos tentando adivinhar onde estava a marosca, e pedindo sempre novo número.


Várias luas e sóis passaram, a sépia virou cor, as televisões rectangulares, e os toldos ao mês mudaram para Sul. Um dia chegou um tempo novo, madrugada dita redentora, as árvores viram novos personagens, novos sons, cartazes nas paredes, caseiros que agora se sentavam à mesa com os senhores de Lisboa, renovando a magia todos os anos. De novo a brisa leve vinda do mar oceano sopra sobre a velha casa cheia de mundos idos e outros ainda por vir, a esplanada do Alcino resistindo holográfica, velha senhora de muitos mortos e muitos vivos.
O Xaimix envelheceu, sem abandonar a ribalta, e continuou, agora com os filhos dos miúdos de outrora, os pais ainda intrigados com os truques, se a carta estava marcada ou a partenaire comprada. Era um personagem de Fellini, Merlin daquele pequeno mundo, fugindo da cor cinza no vasto palco que para ele a vida foi.


Morreu há poucos anos. Não mais houve telepatia, lenços atados ou harmónica de boca. Não mais o laço preto e o casaco branco. Na sua vida artística, e até aos nossos dias, andou sempre com as malas às costas, percorrendo em mais de 50 anos, as aldeias e vilas de norte a sul de Portugal.
As palavras mágicas “Zás – Katrapás e Zás”, usadas nos momentos cruciais dos truques, ficaram na memória de todos aqueles que assistiram aos seus espectáculos.
Deixou como desejo ser enterrado com o seu fato de mágico, artista na vida como na morte, preparando o espectáculo para os serafins na nuvem alta onde a harmónica continua a soar. E o mundo continuou, a serra sentinela, o eléctrico dolente estrada abaixo, o som da harmónica de boca sumindo ao longe.Não esquecemos.

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