quinta-feira, 25 de julho de 2013

A casa que Raul Lino fez para um poeta de Sintra


CARLOS MANIQUE DA SILVA  

Francisco Costa (1900-1988), poeta, romancista, historiador… – alma, na verdade, multifacetada –, foi um sintrense amante da sua vila natal. Na cenografia de Sintra veio, aliás, a colher inspiração para a obra literária que publicou ao longo de seis décadas. No entanto, a sua produção escrita, sobretudo o romance, foi também marcada por experiências extrafronteiras. Penso, designadamente, nas viagens de estudo que realizou a Roma e a Paris, a partir dos anos de 1950. De facto, encontramos ecos dessas viagens nos romances Cântico em Tom Maior (1955) e Escândalo na Vila (1964), para citar apenas dois exemplos.

Mas é nos cenários de Sintra que Francisco Costa vai buscar a seiva maior para a escrita ímpar que lhe reconhecemos. A este respeito, terá sido importante o espaço privilegiado onde viveu a maior parte da vida. De facto, “a casa”, situada na rua Sacadura Cabral, ao Morais, “mesmo em frente da serra verde”, foi idealizada pelo arquiteto Raul Lino, que para o poeta procurou criar o recato necessário para os labores de espírito.

O claro entendimento do sítio – tratava-se, na aceção de Raul Lino, de interpretar o “espírito do lugar” –, bem como a elaboração do projeto de acordo com as necessidades do utilizador constituem aspetos marcantes da obra arquitetónica em questão (concebida em 1926). Não são, de igual modo, de ignorar alguns dos traços idiossincráticos da produção de Raul Lino (o recurso a materiais tradicionais, a utilização do alpendrado…).

A cumplicidade entre o poeta e o arquiteto, estabelecida a propósito da discussão do projeto, pode ser intuída na correspondência trocada entre ambos. Atente-se, por exemplo, numa carta que Raul Lino dirigiu a Francisco Costa, curiosamente em 28 de maio de 1926:

Exmo. Sr.:

Ao prazer de ter feito o conhecimento de V. Ex.ªjunto agora o gosto de poder ler a sua obra. Devo isto à gentilíssima oferta a que se dignou juntar frases muito penhorantes para mim e palavras de excessiva modéstia a seu próprio respeito. De ambas as coisas posso afirmar que são imerecidas.

Procurarei dar alguma satisfação aos seus novos sentimentos no projeto que vou elaborar para a casa de V. Ex.ª pedindo à musa da arquitetura – que algumas vezes tem sido benévola para mim – que me inspire e que supra as falhas que V. Ex.ª terá fatalmente de descobrir.

Deste seu admirador

Atento e obrigado

Raul Lino 
(Espólio pessoal de Francisco Costa)


Antevista tal cumplicidade, não surpreende que Raul Lino tenha, de facto, consagrado especial atenção às necessidades do utilizador. O resultado transparece mais tarde na própria obra do escritor, que em páginas dos romances A Garça e a Serpente (1943), Primavera Cinzenta (1944), Cárcere Invisível (1949) e Promontório Agreste (1973) recorre aos cenários de sua casa, ou deles experienciados:

Passaram, pouco depois, da penumbra da sala ao alpendre cheio de ouro […] Estavam os três diante do vasto panorama. A serra, vestida de veludo verde, ondulava sobre o azul muito puro, mordia-o no alto com os dentes do seu castelo mourisco, e ia esmorecer ao longe nos retalhos verdes e castanhos da planície, que se estendiam até ao mar anilado. Perpassava uma aragem macia. Um comboio apitou algures, no silêncio da terra.

(Francisco Costa, A Garça e a Serpente, 1969, 4.ª edição, p. 229)


Esse panorama é frequentemente descrito do alpendre da casa, porventura um dos espaços vivenciais mais importantes para Francisco Costa. Com efeito, nele passa muitos momentos entregue aos seus pensamentos e reflexões, entrecortados por leituras diversas, por olhares cravados no horizonte… Tal espaço constitui, de resto, fonte de inspiração, conforme pode ser entrevisto em Diálogos Estéticos:

Durante momentos, o meu visitante ficou-se imóvel, com o olhar fito nas brasas que morriam. Mas de repente sacudiu-se, pôs-se de pé:

- O seu lume é fascinante, confesso… Mas as rotativas não param e eu tenho de voltar à cidade… ou antes à aldeia de mármore e granito, enquanto você aqui fica, na serra da lua, que hoje é sobretudo serra de névoa.

- Hoje e muitas vezes mais – observei, encaminhando-o para o alpendre, onde a nossa conversa principiara […]

- Não há dúvida – suspirou ele, como no primeiro dia. – Aqui podem-se escrever romances e refletir sobre a poesia deles.

(Francisco Costa, Diálogos Estéticos, 1981 [texto de 1957], p. 196)


De igual modo, em Promontório Agreste confirmamos a importância do alpendre, como que a assumir um estatuto autónomo da casa, onde se encontra refúgio e se foge, por assim dizer, de solicitações exteriores:

Mas o escritor não se deixou arrastar; e abrindo a sua porta, passou da casa ao alpendre, a fim de sonhar, em frente da serra da lua, o seu futuro romance – que decerto lhe faria as costumadas surpresas.

(Francisco Costa, Promontório Agreste, 1973, p. 345)


Hoje, impõe-se preservar a casa onde Francisco Costa e a sua família viveram ao longo de décadas. É urgente, ao mesmo tempo, atualizar a memória desse espaço. Fiquemos, por ora, com o sugestivo soneto do poeta:



Quando esta casa, feita mesmo em frente

da serra verde, ainda mal se erguia,

e as traves da futura moradia

eram belos pinheiros, simplesmente,



houve uma tarde, sob um sol ardente,

em que o suor em bagas escorria

da testa dos pedreiros e fazia

da cal e areia uma argamassa quente.



Hoje, há paredes contra os vendavais,

mas é cá dentro que soltamos ais

nos dias mais aflitos ou mais duros.



Enquanto gemem temporais lá fora,

pagamos nós em lágrimas, agora,

a dor incorporada nestes muros.


(Francisco Costa, Última Colheita, 1987, p. 13)

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