domingo, 8 de setembro de 2013

Francisco Costa: a propósito de uma estadia no Caramulo (1919)

CARLOS MANIQUE DA SILVA


Em 1919, por motivo de doença, o poeta e romancista Francisco Costa (1900-1988) passou uma temporada na Serra do Caramulo. O contexto foi o seguinte, de acordo com a sua “Autobiografia Literária”. Por alturas da gripe pneumónica, isto é, ao redor dos meses de outubro / novembro de 1918, momento em que a epidemia grassou em força no concelho de Sintra, Francisco Costa foi surpreendido pela doença. Tal enfermidade – a tuberculose pulmonar (desconhece-se, porém, se esteve diretamente relacionada com a pneumónica) – obrigou-o a uma “experiência inútil na serra escalvada do Caramulo”; vivência possível de situar, tendo por base a sua correspondência pessoal, entre os primeiros dias do mês de agosto de 1919 e os meados de novembro do dito ano.

Como igualmente foca na “Autobiografia Literária”, alguns dos seus sonetos – que viriam, aliás, a ser publicados em Pó (1920) – são escritos nesse período de afastamento da vila de Sintra. À luz de tudo o que foi referido, não surpreende que os sonetos em causa reflitam estados de espírito algo contraditórios (embora a tónica seja a descrença) – exemplo paradigmático do soneto “Nevrose de agosto” (que transcrevo a seguir), mas também de “Na Serra”.



Dia húmido e triste. Céu cinzento.

Nuvens. Luz alvacenta e doentia.

Como as águas do mar, meu pensamento

Reflete a cor do céu, triste e sombria.



Penso… E tal como folha em pé de vento,

A minha ideia é tonta, tresvaria…

Ora faz de uma flor um sofrimento,

Ora transforma um cardo em alegria!



Sinto em mim estos pérfidos, fogosos,

O frenesi que faz os criminosos

- desejo indefinido que remoinha.



Olho as cinzas das nuvens, e descubro

que, sendo embora agosto, hoje é outubro…

e esta alma, sendo minha, não é minha!

Outros registos escritos feitos por Francisco Costa no Caramulo deixam transparecer o esmorecimento ante a doença. Refiro-me, por exemplo, a um soneto escrito no dia em que completou 19 anos (12/08/1919); trata-se de uma mensagem de agradecimento endereçada aos hóspedes do Hotel Caramulo, dado o acolhimento que prestaram à sua pessoa. Tal soneto, pela relevância da data, foi impresso dois dias mais tarde em formato de postal (integra o espólio pessoal do escritor) com o objetivo expresso de ser oferecido aos hóspedes do citado hotel.

Deixo ao leitor a possibilidade de analisar mais um documento do espólio pessoal de Francisco Costa, em ordem a ilustrar os estados de espírito por que passou na sua estadia na Serra do Caramulo. Falo de uma carta que endereçou ao seu amigo Amílcar de Barros Queirós (o qual, em 1918, de igual modo por motivo de doença, havia também passado pelo Caramulo). Dessa missiva, algo extensa e redigida em jeito de diário, transcrevo apenas o trecho que Francisco Costa desejou que fosse publicado (conforme nos revelou, em tempos, a filha do escritor, D. Isabel Costa, entretanto já falecida).

Carta a Amílcar de Barros Queirós, 16/08/1919

Ó maravilha das maravilhas! Vi hoje o mar de névoa, celerado! E que mar de névoa, que fantástico espetáculo! Dali debaixo, da última curva da estrada, as ondas brancas vão-se desenrolando até bater no morro da Serra da Estrela. A um lado um pinheiral meio submerso fazia pensar nos estragos magníficos dum novo dilúvio. Aqui e acolá montes imóveis de nata lembravam jatos de espuma de alguma vaga purificada ao rebentar. E, sobre toda esta brancura, a luz já triunfal do sol punha cintilações estonteantes.

Depois o sol veio subindo mais e mais; e o mar que tinha a cor sombria do chumbo tornou a brancura alucinante do leite.

Oh! Que pena tenho de não ter visto nascer o sol. E não sabia – e não me acordaram. Só às 7 ½ houve uma alma caridosa que me veio bater à porta. Mas na próxima vez – fixe!   



 Sabemos que a estadia na Serra do Caramulo não trouxe os efeitos pretendidos. Na verdade, foi na vila de Sintra que, no decurso de “cinco longos anos”, o poeta se tratou a sério. É bom notar que esse período de convalescença – salutaris morbus – foi extremamente profícuo para Francisco Costa. Com efeito, permitiu-lhe a leitura de inúmeras obras, a aprendizagem de línguas, a escrita de poemas…. 

Por sorte, ou talvez por outros desígnios da vida, Francisco Costa venceu a adversidade da doença. Digo isto a pensar no legado que nos deixou, edificado ao longo de oito décadas de vida. Um legado corporizado nos seus livros e que ficou também expresso nas suas intervenções e na sua ação enquanto homem de cultura (recorde-se, apenas a título de exemplo, a fundação da Biblioteca Municipal de Sintra).

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