quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O boicote eleitoral

FERNANDO MORAIS GOMES


Serafim, o funcionário da junta, foi o primeiro a chegar com os boletins de voto, na mesa da secção, na escola primária, eram os do costume, que a sanha pelos setenta euros e dia seguinte livre dera direito a disputa. A Cesaltina já estivera na mesa muitas vezes, era agora a vez  do Castro, barbeiro e escrutinador. Como sempre, a escola primária servia de secção de voto, mas só dois partidos mandaram observadores, o Tiago, um estudante de Arquitectura, e o Tavares, da loja de ferragens.

A freguesia era estável. Os mais idosos votaram pela manhã, alguns com o livro de missa ainda na mão, o Falcato, do partido do governo votou logo às oito e dez e oportuno, ficou-se a cumprimentar os vizinhos, pelo sim pelo não, a sugerir que pensassem bem no voto, que os outros não eram de fiar. Sabedor, o doutor Crespo, do partido adversário, postou-se vinte metros antes do Falcato, na primeira linha de apertos de mão, um e outro respeitando porém  a distância dos quinhentos metros.

Pelas nove e meia só uma vintena votara já. A D. Irene esqueceu-se do cartão mas a mesa reconheceu a octogenária, decana  da aldeia. O rapaz do Bloco torceu o nariz, voto na direita, por certo, melhor seria ter ficado em casa. Também o Tomé da funerária votou cedo, trocista, comentando que nem nesse dia deixava de ir às urnas, e avisando para se escolher bem, para evitar um grande enterro. Na mesa, os afectos ao governo sorriram, nervosos mas descontraídos. As manas Rodrigues, Clotilde e Zezinha uma  do PSD, outra do PS, chegaram sem pressa de votar, a  que ganhasse teria o lanche pago pela outra. Com scones e chá aromático, insistiu a Clotilde, segura da vitória do seu líder.

Pelas dez horas, chegou o velho Avelino, já entrado nos setenta, a mulher morrera um ano antes e entretinha o tempo no café do Brás. Ainda ressacado da véspera, ao entrar na secção de voto, tropeçou numa vala, estatelou-se desgovernado e ficou com as calças  ensopadas de lama. Prestáveis, o Falcato e o dr. Crespo, adversários eleitorais, logo se uniram num bloco central de ajuda ao  azarado vizinho. Avelino, que pensara votar  cedo para se despachar e cair na cama a curá-la, levantando-se a custo, começou a invectivar a junta e os políticos pela falta de obras como deve de ser, e logo um comício improvisado nasceu à porta da secção de voto, cinco eleitores em roda ele, antes de se decidirem a entrar:

-Isto é uma vergonha! Andamos a pagar para estes tipos comerem todos do mesmo tacho, obras é o que se vê!. O povo é que é culpado disto tudo, a carneirada anda toda a dormir, é o que é! -o fato enlameado e o ar zangado faziam do Avelino um inesperado descamisado, a Ermelinda e o Crispim, também com obras à porta sem andar, concordaram, juntando-se ao protesto:

-O Avelino tem toda a razão! Ainda ontem apanhei o presidente da junta mas ele nada, que já mandou um ofício, que já mandou um ofício, mas à porta dele já mandou pintar uma zebra, essa é que é essa! Temos de fazer valer os nossos direitos, senão fazem de nós gato-sapato!

Às tantas eram já nove, os delegados dos partidos, inicialmente passivos, aproveitaram e cavalgaram a revolta, votando neles teriam a hipótese de escolher a lista certa, prometiam. No interior já não havia fila, todos na rua à volta dos lesados por políticos que se enchiam e não faziam  obras. O Avelino, ganhando força e já desperto da ressaca, alvitrou um boicote às eleições, e subindo para  cima dum banco dirigiu-se à multidão (a partir de três já é um comício) apelando à tomada da escola, pondo-se à cabeça do grupo. Alertado pelo barulho, juntou-se o pessoal que bebia aperitivos no café do Brás. Entusiasmados com o protesto, dirigiram-se à mesa, urgia fazer justiça:

-Ó Castro, toca a arrumar a tralha e a encerrar a mesa dos votos. Aqui o povo não vota mais enquanto a junta não fizer obras, isto já passou das marcas! -e com a ajuda de mais dois, atirou a urna ao chão e fez voar os votos como confetti. As manas aplaudiram, divertidas, perdiam a aposta do lanche mas ganhavam a sua Maria da Fonte. A Clotilde, que detestava a Cesaltina, aproveitou e postou-se frente a ela, o poder era deles agora, chefes da fronda da aldeia. Ruborizada, a Zezinha ordenou ao Castro barbeiro para não levantar cabelo, e, subindo a uma cadeira, dirigiu-se aos insurrectos e ao pessoal dos aperitivos:

-Os políticos não passam a vida a falar em voto útil? O voto só é útil para quem o recebe, assim sendo daqui não vai nenhum, que o povo já não vai em cantigas! Queremos a rua arranjada e é para ontem!

O Falcato e o dr. Crespo, representantes dos partidos do centrão, entreolharam-se, urgia uma aliança para repor a ordem, que votassem, que eles depois usariam de influências para uma rápida conclusão das obras. O Avelino estava de pedra e cal:

-Não se vota, nem  vota mais ninguém! -e pegando num isqueiro, escrutinou em cinzas os primeiros votos nulos do país, a GNR de Sintra vinha a caminho mas era já tarde, o Castro, invocando tumulto, fechara já a secção de voto. Vistas bem as coisas, repetindo a votação na semana seguinte até seriam mais setenta euros, deixou correr.

Duas horas depois, armado com o ponteiro da escola, qual metralhadora, e ladeado pelas manas Silva, do comité de luta improvisado, Avelino dava entrevistas à televisão, que o povo era de antes quebrar que torcer, sem arranjo das ruas, não se votava. Ah, e queria a limpeza a seco do fato. Sinuosos, o Falcato e o dr. Crespo mostraram compreensão, e prometeram tudo pagar. Votando, e mais, votando neles, logo se resolveria a questão da vala.

Findo o dia, o país fizera a sua escolha e apenas quatro mesas haviam boicotado, a do Castro, perto de Sintra, era uma delas. Vítima do desmazelo da junta e já trôpego com o sétimo bagaço, o Avelino celebrou no café do Brás  a conquista da primeira maioria absoluta.

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