sábado, 28 de setembro de 2013

Requiem por mim

FERNANDO MORAIS GOMES


1-Introitus: Requiem aeternum

Petrificados plátanos saudam o cortejo, miserere mei, sigo para a eterna noite, oh glórias vãs, poderes etéreos, interrompidas esperanças. Estão Giotto, Guariento, Vitale, a Sacra Via de  suplicantes à porta dos Céus, impotentes corpos  servidos em tarde pascal. Chove nas almas, descansam os corpos, morro no dia em que se morre.

2-Kyrie

Confesso. Confesso, não vivi. Aqui vou, deitado, eu que já não sou, nós que não seremos, choras por mim, Matilde, preso neste corpo inerte. Ah, um cipreste confortante, logo as almas sairão, fraternos patrulharemos angústias. E Deus, existirá? Ficarei à sua direita? Faz frio, arrefece. Voltem, não vão já, não me deixem, egoístas, de volta às vossas mortes diárias. É apertada a urna, falta  o ar. Cheira a flores. Flores de morte.

3- Diez irae

Inicia-se a viagem, Anúbis, o barqueiro, em silêncio maneja o remo, Matilde chora, bem vejo, porque levantarão o som? É o Inferno, pela certa. E Jesus? Não está, regressado dos mortos, qual filme de Corman. São belos os quadros aqui, perfumados. Olha, Brunelleschi, Fra Angelico, Donatello, Masaccio. Renascimento, lhe chamam.Todos mortos, porém. Quando parará esta maldita barca?

4.Tuba mirum

Chegamos a um cais. Miserere mei, misere mei, disformes embuçados carregam-me o caixão. Será bom sinal? Vejo Matilde ao longe, acaricia a minha foto, porque não guiei devagar? É esquisita a morte, cheira a flores e cera. Dois homens riem naquela margem, chegaram agora, novos ainda, discípulos do Cancêr, o guerreiro da Morte.

5.Rex tremendae

Mandam-me erguer do caixão. Que aguarde. À volta, retábulos, e dentro deles mortos, vivos, mortos-vivos. Van Eyck retoca um morto, e madonnas, muitas, florentinas, papais. Há vida também, caminhos para o Paraíso. Olha a Vénus, Botticelli, Bellini, Verrochio. Os corpos estão desnudados, a mim desnudam também, pecador corpo suplicando por um lugar. Sim, são cicatrizes, muitas, cateterismos, acidentes de mota, mas não foi por eles que para cá vim.

Ei-lo, o Redentor, Altivo, Castigador. Existe! Afinal existe! É como nos filmes, velho como o mundo. E agora, ajoelho, choro, que faço? Tirem-me daqui, quero comer, quero os meus amigos! Já sei, daqui a pouco vou acordar e rirei a bom rir. Não vejo a Matilde agora, está escuro, toda a luz  recai sobre o Velho sacripanta.

7.Recordare

Sim,sim é verdade. Matei rolas, indefesas. Bati no Alcides, coitado. Pequei, pequei, pronto. Pecados mortais? Todos. Bem, todos não, nunca tive inveja  do Antunes, coitado, só do Porsche. E a mulher do Brás, foi ela que quis...

8. Confutatis

Abre-se uma porta, estou nu e faz frio. Pronto, pronto, como queiram. Os quadros mais belos passam agora, olha o Bellini, Leonardo. O Leonardo, Deus meu, desculpa, Deus tu, é o paraíso por certo, com Leonardo só pode ser o paraíso. Espreito ao fundo, parece Sintra, há castelos, e muitos anjos. Virarei anjo, sem sexo e com asas? Quando a Matilde me vir...

9.Lacrimosa

Passa um filme na parede. Sou eu, é a minha vida. Olha, a avó Chica, tão frágil, o Zézito, coitado, morreu em África. Olha a Matilde, chora. O Velho está calado, estuda-me, bem vejo. Deixem-me voltar, não sou daqui, as minhas lágrimas de nada valem? Onde está a caridade? Afastem de mim este frio, tapem-me, torturem-me, mas deixem-me.

10.Domine Jesu

Há mais gente, afinal. Jesus, o Nazareno. Como é magro, nos olhos leio sofrimento, o sofrimento do mundo. Olha-me, acaricia-me a cara, segue pela esquerda. Sumiu. O Velho hesita, que se lixe, começo a ficar conformado. Sempre há os quadros, Rafael, olha, mais Leonardos. Sublimes, imortais, perenes, serenos, gloriosos. Mandam que avance. É agora. Toca Mozart, ah Wolfgang, estarás cá também? Só podes. Volto a ver a Matilde, está bela, a dor torna as pessoas belas.

11.Hostias

O Velho baixou novo quadro. A avaliação está feita. Tenho medo, mas estou sereno. Oh, não pode, Michelangelo, a Capela Sistina, o camarote da Vida. Será para mim?

12.Sanctus

Adão, Noé, Abraão, filhos de Israel, esfomeados do Darfur e gaseados da Síria, os inocentes, imaculados, estão cá todos. Vou entrar! Sanctus, Sanctus, acredito agora, desnudado entro, tocam tubas, repicam carrilhões, Matilde, Matilde, é Sexta-Feira Santa, não chores, estava escrito. Olá, sou o Alberto, cheguei hoje, sou o  novo estagiário, aleluia! aleluia!

13.Benedictus

A imagem some no ar. Entrei! Não eram graves os pecados, choro e rio, oh catártico quadro onde afinal morto revivo. Oh triunfo de azul, azul de Céu, azul dos teus olhos, Matilde, azul do mar, salgado, só nosso. Estás longe, cada vez mais longe, mas posso escutar-te a respiração, clara e próxima, teu cheiro a jasmim.

14.Agnus Dei

Apagaram as luzes, qual passarola voo agora, criação de Michelangelo, em sistino paraíso sulco os Céus, rodeado de anjos, seráficos e louros da cor do ouro, como os serafins do antiquário de S.Pedro.

15.Communio: lux eterna

Adeus, Matilde. Ao morrer, vivo para sempre. Fala de mim ao André, é lindo o nosso filho. E quando tiveres saudades, abre o livro grande da sala. Lá estou, celestial sentinela e redimida alma, minúscula  criatura de Michelangelo.

Fecharam a porta do cemitério. Adeus, Matilde, até já…

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