terça-feira, 8 de outubro de 2013

Danos Colaterais

ANTÓNIO LUÍS LOPES

Há muitos meses que a angústia era imensa.

Os cortes nos salários de ambos tinham dado uma machadada definitiva na tranquilidade dos seus dias. Por mais contas que fizessem, o dinheiro não chegava para cumprir com tudo - antes já era à justa, mas conseguiam, mesmo com sacrifícios. Além dos cortes no rendimento, os impostos tinham aumentado e tudo se complicara. Mesmo vendendo o carro (ainda por cima já antigo e com pouco valor) já não havia saída. Nenhum deles conseguia dormir há mais de 6 meses - pensavam enganar-se mutuamente fingindo repousar, mas os olhos de ambos fixavam-se no escuro do quarto e não conseguiam fechar-se. Choravam sem fazer barulho algum e, de manhã, evitavam fitar-se olhos nos olhos. Ambos andavam a tomar calmantes que o médico receitara, mas remédio algum conseguia sossegar aquele demónio a roer-lhes a alma.

Temiam a vergonha, eles que sempre tinham tido uma vida normal. Não eram ricos, nem nunca ansiaram ser - mas tinham uma vida feliz, mesmo quando era mais complicada, sempre se arranjara uma forma de ultrapassar. Mas agora tudo ruíra...

Trabalhando para o Estado eram "apontados" como mera "despesa", por mais esforço e brio que tivessem no seu desempenho nada lhes era reconhecido, tinham-se transformado em "objectos" descartáveis e até o seu sustento lhes fora "confiscado" sem apelo nem agravo. "Sagrados", só os contratos com a banca privada. "Sagrados", só os compromissos com os "mercados". Os contratos e compromissos com quem trabalhava tinham-se tornado letra morta, papel de jornal velho, nada. Tudo o que era verdade passara a ser mentira e vice versa. Os direitos eram agora "regalias" a abater. As regras eram agora "empecilhos ao desenvolvimento". Estavam presos a tarefas mal pagas e desprestigiadas. Estavam presos a compromissos que lhes tinham possibilitado ter um mínimo de conforto, porque não tendo nascido em berço de ouro tudo o que possuíam viera do seu esforço, do seu trabalho.

A casa deixara de ser um refúgio – transformara-se num mausoléu de ansiedade e medo. Era indiferente se amanhecia com sol ou com chuva - mal acordavam só conseguiam pensar em contas de somar e diminuir, em compromissos com data ultrapassada, em cartas de bancos, em despesas, em dívidas, em problemas.

Um dia, sem uma palavra, os seus olhos finalmente cruzaram-se no quarto, ao final do dia. Não era preciso acrescentar mais nada. Ela viu o jovem com quem casara, alegre, optimista, ambicioso, trabalhador - ali transformado num velho precoce, cheio de angústias sem sossego. Ele viu a adolescente com quem sempre namorara, casara, amara e vivera uma vida inteira - ali transfigurada numa mulher triste, sofredora, amarga. Sem uma palavra ambos entenderam que jamais teriam paz, jamais conseguiriam enfrentar a censura alheia, jamais conseguiriam recuperar o sono tranquilo e a simples alegria de despertar tranquilamente.

Fecharam a porta de casa à chave. Fecharam a porta do quarto devagar. Amaram-se pela última vez como da primeira. Tomaram todos os comprimidos que o médico lhes dera para acalmar a fera interior. E partiram - para sempre.

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