sábado, 9 de novembro de 2013

Letargias de Sábado

FERNANDO MORAIS GOMES


O sábado de Outono estava solarengo, sol baixo e fora de época. Intruso, Bruno rumou à cidade, deserta como há muitos sábados para cá, desde que, fugitivos, os moradores se mudaram para o subúrbio, escapando de rendas caras e prédios em ruína. Ao sábado, Lisboa era pachorrenta e ausente, de ruas vazias e despovoadas. Sob a arcada de um prédio do centro, um sem-abrigo dormitava, dando voltas na caixa dum plasma de último modelo, a cidade inteira como quarto, o céu como candeeiro. Após um galão num tasco exibindo ovos verdes e jaquinzinhos da véspera, rumou à Graça, no 28, esventrando as aguareladas vistas de Lisboa. Velhinha e mal tratada, era sempre familiar, rica de passados trágicos e alegres, manjericos e canastras, varina, e aristocrática, contudo, secular testemunha de autos de fé e carreiras da Índia, escravos, pestes e cercos. E a luz, esse azul rasgado, cegando de radiosa, quente e colorida.

Ao contrário do céu, iam cinzentos e perigosos os dias e tempos. O espírito em baixo, os amigos desalentados, uma súbita vontade de partir, sem mapa para a felicidade ou plano B para o dia seguinte. Uma prostituta velha saiu duma pensão, familiar de décadas, ambas velhas e a cair. Observador, sentou-se no miradouro, onde sobreviventes de vidas se arrastavam para um jogo de cartas, cigarro no canto da boca e rugas veteranas. Uma turista nórdica fotografou-os, a miséria fica bem nas fotos, radiografando as almas em silêncio. A manhã passou vagarosa e Bruno deteve-se em volta dum licor, familiares, chiando, os eléctricos iam cruzando as vielas apertadas.

Curiosamente, lembrou-se de Fernando Pessoa, e imaginou-o ali, sulcando a cidade, bebendo aguardentes em tascas, vendo passar os mesmos eléctricos e contemplando o mesmo céu azul. Há magia em Lisboa, e a sua poção é o fado, pensou, despejando a ginja.

Tocando o telemóvel, Susana perguntava por ele. Saíra sem avisar, um desejo irresistível de deambular levara-o no comboio, explicou, não se inquietasse, voltaria pela tarde. Um casamento rotineiro, esfriada a paixão, aguçava a vontade de se isolar, a pensar nas coisas, prisioneiro do tédio e do emprego, da mesma bica à mesma hora, e da imperial ao final do dia, espectral e sórdida.

Descendo à Baixa, tocou o sino na Sé, o casario despertava aos poucos. Vindas da missa, senhoras idosas, com ciáticas e reumáticos, voltavam a casa. Por momentos pareceu-lhe reconhecer a gabardina de Pessoa, a parar para um analgésico brandy e marcar o ponto no Martinho. Faltava um Martinho a Bruno, cansado do café do Baptista, mausoléu de chamuças requentadas e bolos de arroz intragáveis, até nisso era execrável o subúrbio. Melhor seria voltar a casa, enfiar-se num Chopin com gin, ou num Duke Ellington de reserva, Susana ainda iria visitar a mãe, tinha um dia horroroso em perspectiva. Fugido da cidade nua, refugiar-se-ia no quarto, esperando-a, sonhando cidades felizes e futuros em papel, no seu mundo de fortuito escritor. Voltou ao comboio, esse fantasmagórico trem de terrores mundanos, vidas perdidas e sem salvação, olhares aflitos arrastando-se num grafitado depósito de existências, e fechou os olhos, ausente, exilado.

Saiu em Queluz, para um martini. Ali esperaria Susana, até voltar da visita à mãe, já não aguentava os queixumes de D. Berta e os bicos de papagaio. Estranhamente, pareceu-lhe de novo ver o vulto de Pessoa ao balcão, em pé, devia ser do licor, que faria o poeta de Orpheu naquele ermo onde nem absinto se vendia? Pensando bem, tinha razão de ser, o lugar de Pessoa podia ser ali, entre gente perdida, a leste da esperança.

Susana chegou entretanto, recriminando-lhe a ida a Lisboa sem avisar. De volta a casa, logo voltou a sair, a buscar um xarope na farmácia. Letárgico, e aliviado por mais uns momentos a sós, Bruno enfiou-se no quarto, pondo a tocar um Mussorgsky em vinil. Saudosista, buscou um velho álbum de fotografias, confortando-se com os rostos alegres e vivos dum passado agora sépia, bebendo outro martini. É curioso como o passado é sempre feliz, os rostos sorridentes e soltos, e das fotos de família nunca ressalta angústia ou pesar, rostos sempre sem acne, glamourosos mesmo, nos fatos impecáveis estreados para tirar o retrato de família.

Tocou o telefone, interrompendo a introspecção. Era o João, o colega do escritório, convidava-os para uma fondue lá em casa, estavam só ele e a Sónia, os miúdos haviam saído com amigos. Aceitou. Pensando bem, o sábado fluíra depressivo, o Quinta do Carmo do João depressa o devolveria a um presente nimbado a tinto. Regressada a Susana, foi tomar um duche, ao arrumar o álbum na gaveta, numa foto folta do casamento do avô Jesuíno, descortinou uma figura posando esfingica junto aos noivos. Era Pessoa. Melancólico, pareceu fitá-lo, finito no infinito. Esfregou os olhos, fechou a gaveta e meteu-se no chuveiro. Maldito martini!

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