sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Ela Moça, Ele Moleiro- Um conto de Filomena Marona Beja

FILOMENA MARONA BEJA


Frio! Deram-se conta logo que Ana abriu a porta da cozinha.

Sentira-se de repente, na véspera. E aguçara durante a noite, com o vento. Mas não era de estranhar.

- Estamos no tempo dele.

No fim do Outono.

Do outro lado da estrada principiara o desbaste dos pinheiros.

Alguns acabariam em árvores de Natal. Há ainda quem rejeite os abetos em plástico.

Um pinheiro ao canto da sala faz-se lembrar, espalhando o cheiro da resina. Estala, de vez em quando. E tudo o que se lhe arme nos ramos parecerá tão natural quanto as suas próprias pinhas.

Com Janeiro a marcar o fim da festa, desligam-se as luzes, guardam-se os enfeites.

A árvore ensecada. Sacode-se-lhe a neve artificial, aproveitam-se tronco e caruma para a lareira.



Ana voltou para dentro.

- Arrefeceu mesmo! É melhor trocar o casaco ao menino...

Joaquim não se levantara da mesa. Escorreu o resto do café para a caneca. Foi bebendo.

O filho à porta a acabar de comer.

Veio o Sax dando ao rabo, farejando. Queria a sua parte.

O rapaz riu-se e deixou-o abocanhar o resto do pão. Depois lambeu os dedos, saboreando os vestígios de manteiga.

Dedos curtos. A palma da mão quase sem pregas.



Ana tornou à cozinha, trazendo um anorak.

- Será que ainda te serve?... É o do ano passado.

Correndo o fecho, ficava apertado. A pele sintética, à volta do capuz, acusava uso. Mas servia. E as mangas até continuavam compridas demais. Dobrou-as.

- Tens a mãos engorduradas...

Foi buscar uma toalha.

-...e a boca?

A língua a pender, entre os lábios. Meteu-lha para dentro.

- Vamos, Joaquim?... Está na hora!

- Vai indo, com o menino. Eu...

Tinha ainda coisas a fazer. Dar de comer aos coelhos, apanhar os limões atirados ao chão pela ventania da noite. E espalhar granulado na estufa, para evitar que as lesmas devastassem as alfaces.

-...vou lá ter, de bicicleta.



Joaquim fora ajudante de farmácia.

Ana tivera vários ofícios. Costura, limpezas, companhia. E finalmente, encarregada da copa num café.

A farmácia e o café eram na mesma rua, num subúrbio de Lisboa. Impossível não se cruzarem. Não terem reparado um no outro.

- Já não é um homem nada novo... mas bem jeitoso!

- Deve ter mais de quarenta... mas ainda é um pedaço de mulher!

De onde era ele?

Mata da Rainha.

E ela?

Marco da Serra.

Terras voltadas para o pinhal. De um lado o mar, do outro a serra. Vinculadas, em tempos idos, à mesma comarca: Alcedas.

- Saí de lá com doze anos.

- E eu, com quinze.

- Quem diria que éramos de tão perto!...

- Somos...

E seria bom terem cuidado. Juízo. Nunca se sabe no que podem dar as inclinações tardias.

Não deixaram, porém, de atravessar a rua sempre que tinham ocasião. Pretexto. Ora por um café ora por uma carteira de aspirina.

               

- Ontem à noite, quando já estava a arrumar tudo...

Ana cortara-se com a faca do presunto. Não havia meio do sangue parar, e a água oxigenada acabara.

- Porque é que não me ligou?...

Joaquim vivia num anexo da farmácia. Ana estava a par.

-...podia ter ido lá tocar.

Acabou por ir.



- É melhor eu não voltar cá, Joaquim...

- O que é que te deu, Ana?... Parece-me que não te tenho faltado com nada!

- Não...

Ela é que ia já na terceira falta.

Joaquim pulou da cama.              Um filho, quase na idade de serem avós?!



Uma criança diferente. Souberam, logo que nasceu. E, desde daí, modificou-se-lhes a vida.

Não se pense, no entanto, que o toleraram como uma adversidade. Antes com um pressentimento de amor.

E amaram-no, não lhes importando porquê.



Teimavam em o alimentar, dar-lhe banho, vesti-lo. Corriam a aquecer botijas-miniatura, se lhe arroxeavam os braços ou as pernas.

Veria? Ouviria? Seria capaz de caminhar? Fosse como fosse, não o queriam perder.

Levaram-no a hospitais e a consultórios de especialistas.

Procuraram-lhe uma clínica de reabilitação: muito cara. Uma escola especial: não conseguiram vaga.

Ana deixou de trabalhar no café.

Então, uma notícia ao acaso levou-os de volta ao pinhal: abrira em Alcedas um “Instituto” para deficientes.

Informaram-se.

Ensino para uns, oficinas para outros. E acolhimento, para quem a família faltasse.

Pagava-se?

Claro! Mas tanto podia ser em dinheiro, como em trabalho.

- Ainda tenho a casa que era da minha avó, na Mata da Rainha...

-...vamos?

Joaquim pediu a reforma. Foram.



Havia dezasseis anos que ali estavam. Sim, dezasseis anos.

E ainda que Ana e Joaquim continuassem a dizer “o menino”, o rapaz faria dezassete no Verão seguinte.

Passava das oito. O largo principal de Alcedas estava deserto.

A camioneta parou. Era o fim do percurso, e toda a gente desceu. Cada um foi para seu lado, à pressa.

Ana e o filho atravessaram o largo.

O Instituto ficava em frente, na Casa dos Condes. Paço da Justiça, no tempo em que a Vila fora sede de comarca.



A descendência dos senhores de Alcedas deitara contas à sua mansão.

Estivera muitos anos sem serventia. Duas filas de janelas, uma de mansardas. Vidraças partidas, pombos nas sacadas. Metros e metros de caleiras entupidas.

Uma fortuna, só para recuperar tudo aquilo!

E depois, pagar os impostos? Manter o jardim, as paredes, os telhados?

Seria melhor doar, para casa de assistência a pessoas diminuídas.

Para asilo de tolinhos e paralíticos”, dizia-se. Na redondeza do pinhal.

E quase todos lembravam as últimas gerações dos Condes, a casar entre si. Primos com primas. A procriarem coxos e tarados.



E diziam mais:

Os Condes tinham posto no Instituto um administrador de fora de Alcedas. Era um homem com poucos estudos e, além disso, de muito pouca sabedoria.

Tinham-no ido buscar porque era ainda parente deles.

Parente?!

Sim. Reparassem só na filha: braço torto, perna a arrastar. A desgraça dela, apesar de muito bonita, era vir de quem vinha. Por bastardia que fosse.

Todos tratavam o Administrador por “Dom”. “Dom Álvaro”. Ia-lhe melhor que “senhor”. Ele próprio concordava.

Ninguém no átrio.

Ana indecisa: ajudava o rapaz a encaminhar-se, ou levava-o com ela? Àquela hora, já devia ter as batatas descascadas, o panelão da sopa ao lume.

-...oito e meia!

Tinha ainda de ir ao vestiário mudar a roupa e apanhar o cabelo.

- Anda, vem lá...

Mas o rapaz não queria ir. Falava do ensaio. Puxava-a para a porta do salão.

Abriram.

Ninguém. Tudo às escuras, e frio. Muito frio.



De repente, ouviu-se:

O menino está  dormindo,

nas palhinhas despidinho ...



O rapaz correu, levava a língua toda de fora. As vozes vinham do refeitório. O ensaio era lá.



A festa de Natal.

Acontecia, na época devida, desde que o Instituto era Instituto. Cânticos, representações, muitos doces. E um presépio vivo, que se armava no salão.

- Os figurantes são todos pupilos da Casa – orgulhava-se Dom Álvaro.

Logo no ano em que chegara, o rapaz fora Menino Jesus. Depois, uma das crianças que apanhavam erva para dar à vaca e ao burrinho. Tocador de pífaro, mais tarde.

Iria, agora fazer de moleiro. Aparecia de cara e roupa polvilhadas de branco. Entrava e saía de uma azenha. Vinha uma moça buscar um saquito de farinha, dizendo que era para oferecer ao Menino. Entregava-lho.

A moça engraçara com os modos dele. Com a linha dos olhos e a boca sempre a deixar que a ponta da língua passasse.

E ele engraçou com ela. Sem lhe fazer diferença o entortar do corpo ou o arrastar da perna.

Começaram a ficar juntos, depois dos ensaios. Dir-se-ia que conversavam como conversam todos os rapazes e raparigas, naquela idade. Frases incompletas, palavras sem consequência.

E uma tarde, sozinhos no quarto onde se guardavam os adereços, ele beijou-a.

Ei-los apaixonados. Sem poderem desvendar o que é o amor, nem admitir que os contrariassem. Como acontece a todos, quando se apaixonam.



E já ela estava à porta do refeitório. O saco vazio, pendendo-lhe do braço.

Ele acenou um “até logo”, à mãe.

- Até logo, filho.

- O que aconteceu?!

Joaquim saltou da bicicleta e tentou levá-la à mão, até à porta do Instituto.

O largo cheio de gente? Uma ambulância e a Guarda diante da Casa dos Condes? Porquê?!

Chegou-se a um conhecido e perguntou se tinha havido algum acidente.

- Não sei... talvez...

- Se houve, tenho de lá ir...

Joaquim mantinha o posto de socorros do Instituto. A caixa das compressas, a das ligaduras, um armário com remédios. E a experiência de ter trabalhado, quase quarenta anos, numa farmácia.

Foi rompendo, até ao Jeep da Guarda.

Muitos tons de voz, à sua volta. Todos a repetir o nome de Dom Álvaro.

O cabo da Guarda, também seu conhecido, disse-lhe que não podia passar.

- Que diabo!... A minha mulher e o meu filho estão lá dentro!

- Mas também lá estão as autoridades...

Que autoridades? Porquê? E a ambulância?

Silêncio. Um estranho silêncio.

A entrada pelo quintal!...”, lembrou-se.

Portão em madeira, de um só batente. Deixavam-no quase sempre no trinco.

Deu a volta à Casa, empurrando a bicicleta.

Sim, estava aberto.

Correu até à cozinha.

- ANA!... ANA!...

Não estava ninguém.

Foi pelos corredores. As portas todas abertas,  salas e gabinetes vazios, coisas atiradas para o chão.

Era como se todos se tivessem precipitado porque alguém gritava. Gritos terríveis.

 Acabou por esbarrar com um maqueiro.

Embora não o conhecesse, perguntou o que era aquilo. O que se passara, afinal?

- O Dom Álvaro foi dar aí com um miúdo em cima da filha... ela com as saias para cima, ele sem calças...

- E o que é que ele fez?!... Bateu-lhes?...

Puxara de uma navalha que trazia sempre consigo, e capara o rapaz.

Deixara-o a esvair-se, enquanto arrastava a filha para o seu gabinete.

Berrava-lhe: “Desavergonhados!  Ele já está, e agora tu...”



Entretanto, alguém chamara a ambulância, e a Guarda.

- Mas quando a gente cá chegou...

O rapaz já estava morto.

- Parece que era filho aí de uma das cozinheiras... e o pai...

O Capitão da Guarda dera logo voz de prisão ao Administrador. Mas ainda perguntara:

- Afinal o que alega, senhor Dom Álvaro?... Porque é que deu cabo do rapaz?!

- Não ia deixar que eles ficassem ali, a fazer aquilo... Pois não?

Consentir que lhes viesse um filho ainda mais atrasado de juízo que ele? E mais aleijado que ela?



Joaquim deixou-se escorregar até ao chão. Não chorava. Gritava:

- Estúpido!... Estúpido!...

Mais que estúpido.

- Ignorante!

Dom Álvaro nem sequer sabia que todos os portadores de trissomia-21 são estéreis.   

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