quarta-feira, 31 de julho de 2013

Sobre as Jornadas Mundiais da Juventude

RENATO EPIFÂNIO

Contrariando mil e uma previsões feitas, as religiões continuam a mobilizar muita gente, como recentemente se viu na Jornada Mundial da Juventude promovida pela Igreja Católica no Rio de Janeiro.

Não me vou pronunciar aqui, nietzscheanamente, sobre a “verdade intrínseca” das religiões em geral ou da religião católica em particular.

Nem sequer sobre a figura do novo Papa “Francisco”. Isso não é aqui o mais importante.

Pretendo apenas salientar que, para muita gente, o horizonte da existência quotidiana continua a não ser suficiente. E, por isso, sentem a necessidade de se porem ao serviço de ideais maiores. Independentemente do caminho que escolham,  esse impulso é, em si próprio, positivo, a meu ver.

E, face à aparente falência das grandes utopias políticas, é até compreensível que muitos continuem a apostar no caminho religioso.
 

terça-feira, 30 de julho de 2013

Lembrando José Cupertino Ribeiro Jr.(1848-1922)


JÚLIO CORTEZ FERNANDES

Membro do Directório incumbido pelo congresso republicano realizado em Setúbal em 1908 de concretizar a Revolução, Cupertino Ribeiro filiou-se no Partido Republicano Português aos 18 anos. Tornou-se graças ao seu esforço e habilidade para o negócio num rico comerciante industrial e gestor, cuja bolsa esteve sempre aberta para ajudar a causa da República. Nasceu em Pataias, concelho de Alcobaça , e faleceu em Lisboa na sua casa na Rua Braamcamp no dia 11 de janeiro de 1922, data desconhecida, que aqui divulgamos finalmente.

Implantada a República foi eleito deputado à Constituinte, sendo posteriormente Senador. Cupertino Ribeiro, ambicionava ser Ministro das Finanças do  Governo Provisório, tendo sido preterido em favor de Sidónio Paes, conotado com a ala radical e jacobina do Partido Republicano, contrariamente, Cupertino sempre se colocou ao lado dos moderados, tendo aderido ao Partido Unionista de Brito Camacho, em oposição ao PRP, partido que dominou a cena politica nacional a partir de 1910. Cupertino Ribeiro era proprietário da Fabrica de Estamparia e Tinturaria de Rio de Mouro, Sintra. Comprou uma das mais importantes quintas da localidade, a Quinta da Ponte, que remodelou e onde construiu uma ampla moradia, frequentada pela melhor sociedade lisbonense do tempo,a quinta passou a ser conhecida por Quinta do Cupertino. Junto da mesma, e frente à fábrica mandou edificar um bairro para os operários.

Contribuiu com a avultada quantia de 35.000$00 para a construção do cemitério paroquial, iniciativa da junta republicana de 1909-1911, eleita, em parte devido à sua influência. Com as divisões surgidas no seio do movimento republicano depois de 1910, os radicais tomaram conta da junta e Cupertino Ribeiro, desiludido, terá desistido da ideia de mandar construir o seu mausoléu no cemitério da terra que tanto amava.

Vendeu a fábrica, transformada pelo novo dono em local de tratamento de curtumes, actividade causadora de poluição acentuada do rio, e cheiro nauseabundo de que os habitantes se queixavam,nomeadamente os moradores da povoação de Francos situada a jusante da "curtimenta".

O seu funeral realizou-se para o cemitério lisboeta dos Prazeres, sendo a sua urna depositada, no jazigo da família Ferreira Braga, parentes da sua viúva D. Adelaide. Foi acompanhado até a última morada pelos amigos de sempre entre eles: o general Correia Barreto, ministro da Guerra, Inocêncio Camacho, governador do Banco de Portugal, Tomé de Barros Queiroz, Guilherme Graham destacado capitalista,  muitos comerciantes importantes como Ramiro Leão, e também pelo antigo pessoal da fábrica que lhe devotava sincera estima.

Em catorze de Janeiro a Junta de Freguesia de Rio de Mouro reuniu em sessão ordinária, na qual não foi feita qualquer referência ao desaparecimento de Cupertino Ribeiro, a maioria era do PRP, para que não restassem dúvidas que o gesto foi deliberado, o presidente referiu "só se devem tratar dos interesses da freguesia arredando-se de qualquer nota politica", quer dizer nada de falar no falecido. Cupertino Ribeiro, que tanto se orgulhava da vitória da lista republicana nas eleições de 1909 em Rio de Mouro, recebeu no fim aquilo que os políticos desavindos distribuem como ninguém: vil desprezo a quem deviam estar gratos. 

Completou-se o ano passado o 90º aniversário da sua morte, figura de relevo nacional, merecia que o facto se assinalasse, assim este singelo depoimento é um contributo para que a efeméride seja lembrada. 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Um nicaraguense em Sintra em 1912


FERNANDO MORAIS GOMES

Rubén Darío (1867 - 1916), foi o pseudónimo literário de Félix Rubén García Sarmiento, nasceu em Metapa, hoje Ciudad Darío, Matagalpa, na Nicarágua, a 18 de Janeiro de 1867 tendo falecido a 6 de fevereiro de 1916 em Léon. Iniciador e máximo representante do Modernismo literário em língua espanhola, foi possivelmente o poeta com maior e mais duradoura influência na poesia do século XX no mundo hispânico. Para a formação poética de Rubén Darío foi determinante a influência da poesia francesa. Em primeiro lugar, os românticos, e muito especialmente Víctor Hugo. Mais tarde, e de forma decisiva, chega a influência dos parnasianos Théophile Gautier, Catulle Mendès e José María de Heredia. Por último, o que termina por definir a estética dariana é sua admiração pelos simbolistas, e entre eles, acima de qualquer outro, Paul Verlaine. 
 
Azul, de 1888, considerado o livro inaugural do Modernismo hispanoamericano, recolhe tanto relatos em prosa como poemas, cuja variedade métrica chamou a atenção da crítica. A etapa da plenitude do Modernismo e da obra poética dariana é o livro Prosas profanas y otros poemas, colecção de poemas em que a presença do erótico se torna mais importante e em que não está ausente a preocupação por temas esotéricos. Neste livro já está toda a imaginação exótica própria da poética dariana: a França do século XVIII, a Itália e a Espanha medievais, a mitologia grega, etc.

Pois Rubén Darío foi um dos poetas que também veio conhecer Sintra. Em Abril de 1912, viajando com o escritor argentino Alfredo Guido, Darío esteve em Lisboa, daqui enviando crónicas para o jornal de Buenos Aires La Nacíon, e nesse jornal sai a 21 de Junho de 1912 a sua crónica sobre Sintra, que embora em castelhano, aqui se transcreve, registando as impressões de mais um ilustre viajante, menos de dois anos após a proclamação da República Portuguesa:

“O carro sai de Lisboa a uma velocidade vertiginosa, com a minha admoestação ao chauffeur. O meu companheiro Alfredo Guido, que é automobilista, afirma-me que tudo vai perfeitamente. Assim, a passo diabólico, logo deixamos atrás a “coisa boa”, povoados e aldeias, pela estrada que conduz a Sintra, lugar de veraneio dos reis e das famílias aristocráticas do hoje “escangalhado” Reino. A estrada é ondulada, e vamos subindo. Logo se divisam fantásticas construções, no alto da serra, sobre amontoados de pedras, que poderiam ser da pedreira de mitológicos gigantes. Uma é um castelo em ruínas, cinzento, fantástico, o outro é o castelo da Pena, mansão de conto azul, de conto de “mil e uma noites”, com a sua torre esbelta e ligeira, suas cúpulas douradas, seu aspecto ilusório. Lá haveremos de chegar. Entretanto, vemos dum lado do caminho, entre a verdura fresca de uma vegetação profunda, villas, chalets, casas pitorescas. Um palácio surge, gracioso, aéreo, todo branco da espessura das árvores, dizem-me que pertence ao sr. Silveira, chamado pelas suas vistosas rendas “Silveira dos Milhões”. Passamos pelo pequeno povoado de Sintra e subimos por fim à moradia que foi real. Se o aspecto exterior é admirável e temeroso, quando se vê como construíram tal edifício à beira de enormes precipícios num país onde não foram raras as ocorrências sísmicas, o interior é desolador. Há o que se poderia chamar os despojos duma régia escassez. Alguns velhos móveis, precárias porcelanas, tristes antiguidades sem grandeza. E se vê como deve ter passado tristes e aborrecidas horas o jovem monarca nos últimos verões, antes que soprasse a revolução e seus ventos fortes.

O castelo parece algo vazio e abandonado, junto à entrada conventual circula um ou outro guarda da República, e sai-se dali como de um lugar de desolação”

Em Lisboa, Darío foi recebido pelo chefe do governo, Augusto de Vasconcelos, registando o clima frio entre diplomatas e as recentes autoridades republicanas, referindo subsistirem na paisagem lisboeta vidros partidos em cafés, produto de surtidas revolucionárias, nessa altura ainda frequentes, bem como cafés cheios de carbonários. E escreve:

“Lisboa está socialmente triste, pois todos os elementos de valia, os ricos e a nobreza, tomaram o caminho da emigração e fixaram em Paris e Londres e outras capitais europeias. Há quem espere por D. Manuel, e há quem ache que D. Manuel não voltará. Perguntei a um modesto funcionário do governo: “Há muitos partidários da República?” “Muitos!”.Não se sabe pois o que pode suceder a este país onde como em Espanha estão arreigadas as velhas tradições e onde um partido triunfante ensaia uma nova forma de governo o pior que pode!

Nostálgico dum passado perdido, são dele os versos

no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo
 ni mayor pesadumbre que la vida consciente

Um assento de casamento de 1660

RUI OLIVEIRA

Reveste-se de grande interesse, para a História Local, a compreensão da toponímia, macro e micro, dos lugares a que nos propomos investigar. Assim, o “descortinar” dessas particularidades, impõe a compreensão das suas raízes etimológicas, a observação das suas evoluções, tanto na grafia como na fonética.

Ora, um dos acervos documentais escritos, que mais propiciam essa investigação, são os Arquivos Paroquiais, nomeadamente os seus livros de Registos de Casamentos, de Baptizados e de Óbitos. Os Registos de Casamentos são os mais fecundos na informação toponímica das localidades adstritas a cada paróquia, bem como das Paróquias vizinhas e, até, de outras bem mais longe. A razão reside, afinal, no simples facto que o registo tinha de ser o mais preciso possível sobre os noivos, os padrinhos ou testemunhas, segundo a directiva específica do Concílio de Trento. Resulta, assim, um enorme rol de lugares, que durante décadas e séculos vão sendo enunciados e que refletem as cambiantes, se existiram, de uma forma constante.

Este documento, que aqui trazemos hoje, é bem o exemplo do que acabamos de referir; tem vários topónimos ainda hoje existentes, apenas, com ligeiras variantes de grafia e que são ainda, na actualidade, reconhecíveis na Freguesia de Algueirão Mem Martins. Para além disso, também nos mostra como os laços familiares, de amizade ou simples relacionamento amigável eram bastante alargados, territorialmente. Denotando uma mobilidade da população em itinerários ancestrais.

                                                 Livro M I (Livro de Registos Mistos) Paróquia de São Pedro de Sintra.
Em os vinte e hum dias do mês de novembro de [Mil] seis sentos e secenta anos por comissão do R.do [Reverendo] vigário desta Igr.ª [Igreja] recebi por marido e mulher in facie Ecc.ea [Ecclesia] [em presença da Igreja] a Heronimo [Jerónimo] de Sousa filho de Valério Roiz e de Cn.ª [Catarina] Joaõ do lugar da Cavaleira com Cn.ª [Catarina] Jorge do lugar Sacottes filha de Jorge Martins já defunto e de margarida Phelippe desta freguesia hum e outro test.as [testemunhas] que foraõ prezentes André Jorge m.or [morador] no lugar dos Pulsigais [na atualidade Pexiligais] freguesia de Rio de moiro e Heronimo Gaspar do Lugar de Camporaso Freguesia de S. [S] Miguel do Arebalde //
                                                                                                O P.e [Padre] Manoel da Costa
André        [cruz]        Jorge                                        Heronimo  [cruz]
                               [Ambas as assinaturas por consignação ou de cruz]
Normas de transliteração e transcrição:
Mudança de linha no documento assinada com / dupla quando paragrafo //; Desdobra de abreviaturas feita entre parêntesis rectos [ ] com a inclusão dos caracteres por nós colocados a vermelho “A “ bem como de esclarecimentos pontuais; a negrito e itálico o texto; Mantivemos a forma de acentuação tal como o escrevente a exarou.

domingo, 28 de julho de 2013

Chegou tempo de pôr fim à farsa

RENATO EPIFÂNIO
À vista mais curta, todos tiveram a sua vitoriazinha. Cavaco Silva, por via de mais um dos seus famosos “tabus”, conseguiu de novo ser o centro das atenções durante uma semana e pôde mesmo dizer: “pelo menos, tentei”. Pedro Passos Coelho recebeu a “garantia presidencial” de levar o seu mandato até ao fim. Paulo Portas conseguiu finalmente chegar a Vice-Primeiro-Ministro com amplos poderes. António José Seguro pacificou uma vez mais o seu partido. Não chegou, porém, sequer a ser uma vitória de Pirro.
Na verdade, todos perderam. E muito. Cavaco Silva expôs uma vez mais a sua fragilidade – um Presidente forte teria conseguido impor um Compromisso de Salvação Nacional. O mesmo se diga de Pedro Passos Coelho – que não consegue controlar, de todo, os seus ministros. E de Paulo Portas – irrevogavelmente ferido na sua credibilidade, agora até no interior do seu partido, que o forçou a recuar. E de António José Seguro – as pressões de que foi publicamente alvo, e às quais sucumbiu, provam bem a sua insegurança. Seguro provou, uma vez mais, que não é, seguramente, a solução.
Na dita “esquerda”, os partidos que temos demonstraram, uma vez mais, a sua irrelevância. A encenada tentativa de convergência durou apenas umas horas antes de se desvanecer. Mas, como a memória é curta, em breve, decerto, subirá de novo ao palco. Até ao dia em que já não houver ninguém na plateia para assistir, pela enésima vez, à mesma farsa de sempre. O que estará para muito breve – nas próximas eleições, ou aparece algo de verdadeiramente novo, ou então só nos resta o voto branco ou nulo. Chegou o tempo de pôr fim à farsa.

O dever da criação de um Grémio Literário e Artístico de Sintra

JOÃO RODIL


Há muito que sinto uma certa urgência, uma necessidade serôdia, de criarmos em Sintra, e em torno dos  actos criativos, dos estudos sintrenses e da Arte em geral, uma agremiação que unisse todos aqueles que, de algum modo, são geradores ou catalisadores da Arte e da Cultura neste concelho.

Chamei-lhe Grémio Literário e Artístico de Sintra, primeiro pelo apego sentimental e enorme respeito que tenho pelo secular Grémio Literário de Lisboa e, segundo, porque à falta de melhor me pareceu uma hipótese que poderá definir bem aquilo que gostaria de ver concretizado por essa associação.

Tenho muito orgulho de pertencer ao meu tempo. E também tenho muito orgulho em pertencer a este lugar, Sintra. Por isso, não trocaria nem o espaço nem o tempo por outro qualquer. Acho que Sintra reuniu, nestes últimos trinta anos – filhos e netos da Revolução de Abril – um extraordinário e multifacetado grupo de criadores e artistas que poderão formar um verdadeiro escol, com capacidades para desenvolver a Arte e a Cultura em Sintra de forma nunca experimentada e, por isso e com base nisso, preparar um novo amanhã para as gerações vindouras.

Os nomes são muitos. E, mais uma vez, tenho muito orgulho de ter partilhado este  tempo e este espaço com eles. Mas sinto que temos o dever de ir mais além, de dar a Sintra um pouco mais, de acrescentar ciência, conhecimento e educação ao lugar em que vivemos. Via como muito eficaz, e talvez fundamental, a criação de vários Gabinetes de Estudos dentro deste Grémio. Música, Teatro, Literatura, Dança, Pintura, Escultura, História, Etnografia… numa interdisciplinaridade fervilhante e geradora de criação.

Penso que este seria o caminho mais sério e viável para a concretização de alguns projectos que Sintra muito necessita e dos quais há muito enferma. A criação de uma cadeira, ou de um mestrado ou pós-graduação, em Estudos Sintrenses; a compilação e concretização dos Anais da História de Sintra; a História do Teatro em Sintra; etc.

Por agora, só desejo lançar aqui a ideia, talvez utópica para uns, talvez realizável para outros. Se acaso houver quem leia estas linhas, e nelas encontre alguma afinidade de pensamento e de sentimento, peço-lhe que me diga para podermos conversar, mais profundamente, sobre o projecto.

sábado, 27 de julho de 2013

Regaleira

PEDRO MACIEIRA









“..Seguindo a estrada (de Collares) , do lado esquerdo fica a Quinta da Regaleira, que , além da sua excellente agua, reputada a melhor de Cintra, tem uma vista admirável, e possue bellezas naturaes ,muito apreciaveis; as suas modernas construcções , em estylo manuelino, são dignas de se admirarem.
A Quinta da Regaleira, póde ser visitada todos os dias, com permissão do Sr. Dr. Carvalho Monteiro.”

Referência sobre a Quinta da Regaleira in “Guia do Viajante , em Portugal e suas colónias em Africa” de 1907

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Caos, por Gonçalo Moleiro

GONÇALO MOLEIRO

Da minha janela, distante da realidade das cidades, vejo copas de árvores.Não sei nem pretendo conhecer o número exacto. Interessam-me as tonalidades, semelhantes às de um godé onde diversos tons de castanho, verde e amarelo dançam com a água trazida no pincel. A construção é quase inexistente. Destaca-se o Palácio da Pena que, apesar da sua posição,parece nascer das rochas que se erguem no topo da Serra. Faz parte dela, dialogando com a natureza com a intimidade de quem se conhece há séculos. O mesmo não acontece com o edificado que observo da janela do comboio. A rapidez da construção e a especulação imobiliária sobrepuseram-se à sensibilidade e ao planeamento. Cores, materiais e alturas diferem, originando um enorme caos que se reflecte na vida de quem habita o espaço.
Os blocos de betão revelam-se incapazes de comunicar com o que os rodeia, com a cidade e, consequentemente, com o Homem. O espaço entre prédios, ou a ausência dele, permite a existência de pouco mais que vias, valorizando o carro em detrimento do peão. O espaço público é quase inexistente. As árvores vivem solitárias em vasos esculpidos na calçada que se deforma pela presença de raízes. A sombra das copas mistura-se, aqui, com a dos prédios disformes, criando corredores escuros que nos obrigam a acelerar o passo numa clara manifestação de desconforto. Hoje conhecemos estes problemas e tentamos resolvê-los. Por vezes o espaço ganha, assim como quem o vive. Mas, em muitos casos, existe pouca margem de manobra. No livro "Saber Ver a Arquitectura" Bruno Zevi referiu que "[…] Qualquer um pode desligar o rádio e abandonar os concertos, não gostar de cinema e de teatro e não ler um livro, mas ninguém pode fechar os olhos diante das construções que constituem o palco da vida citadina e trazem a marca do homem no campo e na paisagem." É interessante desenhar o caos, vivê-lo, nem tanto. O urbanismo e a arquitectura têm outras responsabilidades, participando activamente na vida das pessoas que não os podem evitar. Vejo-o da janela do comboio.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

A casa que Raul Lino fez para um poeta de Sintra


CARLOS MANIQUE DA SILVA  

Francisco Costa (1900-1988), poeta, romancista, historiador… – alma, na verdade, multifacetada –, foi um sintrense amante da sua vila natal. Na cenografia de Sintra veio, aliás, a colher inspiração para a obra literária que publicou ao longo de seis décadas. No entanto, a sua produção escrita, sobretudo o romance, foi também marcada por experiências extrafronteiras. Penso, designadamente, nas viagens de estudo que realizou a Roma e a Paris, a partir dos anos de 1950. De facto, encontramos ecos dessas viagens nos romances Cântico em Tom Maior (1955) e Escândalo na Vila (1964), para citar apenas dois exemplos.

Mas é nos cenários de Sintra que Francisco Costa vai buscar a seiva maior para a escrita ímpar que lhe reconhecemos. A este respeito, terá sido importante o espaço privilegiado onde viveu a maior parte da vida. De facto, “a casa”, situada na rua Sacadura Cabral, ao Morais, “mesmo em frente da serra verde”, foi idealizada pelo arquiteto Raul Lino, que para o poeta procurou criar o recato necessário para os labores de espírito.

O claro entendimento do sítio – tratava-se, na aceção de Raul Lino, de interpretar o “espírito do lugar” –, bem como a elaboração do projeto de acordo com as necessidades do utilizador constituem aspetos marcantes da obra arquitetónica em questão (concebida em 1926). Não são, de igual modo, de ignorar alguns dos traços idiossincráticos da produção de Raul Lino (o recurso a materiais tradicionais, a utilização do alpendrado…).

A cumplicidade entre o poeta e o arquiteto, estabelecida a propósito da discussão do projeto, pode ser intuída na correspondência trocada entre ambos. Atente-se, por exemplo, numa carta que Raul Lino dirigiu a Francisco Costa, curiosamente em 28 de maio de 1926:

Exmo. Sr.:

Ao prazer de ter feito o conhecimento de V. Ex.ªjunto agora o gosto de poder ler a sua obra. Devo isto à gentilíssima oferta a que se dignou juntar frases muito penhorantes para mim e palavras de excessiva modéstia a seu próprio respeito. De ambas as coisas posso afirmar que são imerecidas.

Procurarei dar alguma satisfação aos seus novos sentimentos no projeto que vou elaborar para a casa de V. Ex.ª pedindo à musa da arquitetura – que algumas vezes tem sido benévola para mim – que me inspire e que supra as falhas que V. Ex.ª terá fatalmente de descobrir.

Deste seu admirador

Atento e obrigado

Raul Lino 
(Espólio pessoal de Francisco Costa)


Antevista tal cumplicidade, não surpreende que Raul Lino tenha, de facto, consagrado especial atenção às necessidades do utilizador. O resultado transparece mais tarde na própria obra do escritor, que em páginas dos romances A Garça e a Serpente (1943), Primavera Cinzenta (1944), Cárcere Invisível (1949) e Promontório Agreste (1973) recorre aos cenários de sua casa, ou deles experienciados:

Passaram, pouco depois, da penumbra da sala ao alpendre cheio de ouro […] Estavam os três diante do vasto panorama. A serra, vestida de veludo verde, ondulava sobre o azul muito puro, mordia-o no alto com os dentes do seu castelo mourisco, e ia esmorecer ao longe nos retalhos verdes e castanhos da planície, que se estendiam até ao mar anilado. Perpassava uma aragem macia. Um comboio apitou algures, no silêncio da terra.

(Francisco Costa, A Garça e a Serpente, 1969, 4.ª edição, p. 229)


Esse panorama é frequentemente descrito do alpendre da casa, porventura um dos espaços vivenciais mais importantes para Francisco Costa. Com efeito, nele passa muitos momentos entregue aos seus pensamentos e reflexões, entrecortados por leituras diversas, por olhares cravados no horizonte… Tal espaço constitui, de resto, fonte de inspiração, conforme pode ser entrevisto em Diálogos Estéticos:

Durante momentos, o meu visitante ficou-se imóvel, com o olhar fito nas brasas que morriam. Mas de repente sacudiu-se, pôs-se de pé:

- O seu lume é fascinante, confesso… Mas as rotativas não param e eu tenho de voltar à cidade… ou antes à aldeia de mármore e granito, enquanto você aqui fica, na serra da lua, que hoje é sobretudo serra de névoa.

- Hoje e muitas vezes mais – observei, encaminhando-o para o alpendre, onde a nossa conversa principiara […]

- Não há dúvida – suspirou ele, como no primeiro dia. – Aqui podem-se escrever romances e refletir sobre a poesia deles.

(Francisco Costa, Diálogos Estéticos, 1981 [texto de 1957], p. 196)


De igual modo, em Promontório Agreste confirmamos a importância do alpendre, como que a assumir um estatuto autónomo da casa, onde se encontra refúgio e se foge, por assim dizer, de solicitações exteriores:

Mas o escritor não se deixou arrastar; e abrindo a sua porta, passou da casa ao alpendre, a fim de sonhar, em frente da serra da lua, o seu futuro romance – que decerto lhe faria as costumadas surpresas.

(Francisco Costa, Promontório Agreste, 1973, p. 345)


Hoje, impõe-se preservar a casa onde Francisco Costa e a sua família viveram ao longo de décadas. É urgente, ao mesmo tempo, atualizar a memória desse espaço. Fiquemos, por ora, com o sugestivo soneto do poeta:



Quando esta casa, feita mesmo em frente

da serra verde, ainda mal se erguia,

e as traves da futura moradia

eram belos pinheiros, simplesmente,



houve uma tarde, sob um sol ardente,

em que o suor em bagas escorria

da testa dos pedreiros e fazia

da cal e areia uma argamassa quente.



Hoje, há paredes contra os vendavais,

mas é cá dentro que soltamos ais

nos dias mais aflitos ou mais duros.



Enquanto gemem temporais lá fora,

pagamos nós em lágrimas, agora,

a dor incorporada nestes muros.


(Francisco Costa, Última Colheita, 1987, p. 13)