domingo, 2 de fevereiro de 2014

Entrevista com Miguel Real

FERNANDO MORAIS GOMES
 
O Miguel Real é um escritor por muitos laços ligado a Sintra. Acha que há um sentido trágico dominante em Sintra ou serão apenas exacerbações românticas derivadas dos mitos que a ela se associam, hoje em retorno acentuado? 

Não, não existe sentido trágico ligado a Sintra. Muito pelo contrário. Sintra evoca um espírito poético, como João Rodil o prova em Sintra. Serra, Luas e Literatura (1995), identificando-se com o corpo literário criado pelos poetas e escritores que por aqui passaram. Um espírito poético que apenas pode ser comungado poeticamente. O corpo de que esta alma é unidade é, indubitavelmente, a minerabilidade esmagante da serra: a Serra enche, deleita e rejubila a nossos olhos, sacia os nossos sentidos, e sempre que atingimos o cume da Serra de novo nos confrontamos com dois gigantes cósmicos: o azul do mar e o azul do céu, ambos cruzados num indefinível recorde. Face a esta tripla paradoxal maravilha, constatamos que só pode ser comungada pelo coração do sintrense através de uma forma que a sublime, uma alma que a transfigure esteticamente, um espírito que lhe corresponda em grandeza e excelência - e esse é o espírito poético.
 

Costuma dizer-se que depois de Sartre a pós modernidade colocou os intelectuais numa posição descentrada. O que é ser intelectual hoje? Se o intelectual nasceu com a Cidade, hoje, com a globalização terá virado funcionário? O intelectual é um "escriba obscuro" como escreveu Foucault?
 

Peço desculpa, mas não. O intelectual, como Saramago, Lobo Antunes, Boaventura de Sousa Santos, Manuel Maria Carrilho. Gonçalo M. Tavares, Viriato Soromenho-Marques..., continua empenhado em transformar o mundo. Porém, não o faz já usando uma voz política, como até à primeira metade do século XX, mas uma voz estritamente cultural. A política perdeu o fulgor de transformador do mundo, existe apenas como regedor da existência. A cultura e a ciência, diferentemente do passado, penetram hoje nos costumes da população, exprimindo os desejos de mudança e o horizonte da transformação social. O político rege, o intelectual, pela sua obra, anuncia o novo mundo. O político rege, o cientista transforma directamente o mundo, impondo novos objectos que modelam uma nova existência social, e o intelectual abre todos os dias novos horizontes ao pensamento.

Qual a sua obra mais conseguida? Já se zangou por ter escrito alguma delas?
 

No campo do ensaio, Introdução à Cultura Portuguesa, sem dúvida, já com tradução para castelhano na editora Planeta e com lançamento na Feira do Livro de Bogotá, a segunda mais importante da América Latina. Também me orgulho bastante da série "Nova Teoria", que publico na D. Quixote. No campo do romance, tenho três romances felizes: Memórias de Branca Dias, já em 4ª edição; A Voz da Terra, sobre o terramoto de 1755, também em 4ª edição, e O Feitiço da Índia, já em 2ª edição. Sim, recuso-me a reeditar um romance há muito tempo esgotado: A Ministra. Foi escrito com raiva e hoje não gosto nada dele.

Pode dizer-se que o escritor escreve sempre o mesmo livro e toda a obra é autobiográfica?
 

Sim, há traços idiossincráticos identificadores do autor em toda a sua obra: o privilégio atribuído à personalidade de certas personagens recorrentes; o privilégio a certas construções frásicas, a certas palavras, um estilo invariável, uma descrição semelhante do tempo atmosférico, do ambiente natural, dos conflitos sociais... Por isso, Saramago dizia justamente que todo o romance era em parte autobiográfico, não no sentido de reflectir directamente a personalidade do autor ou no sentido de narrar a sua vida, mas no sentido de espelhar as grandes preocupações existenciais do autor. Desde Aparição (1959) a até à sua morte, a escrita de Vergílio Ferreira é sempre tocada pela amplidão metafísica, e toda a obra de José Cardoso Pires é sempre realista. É neste sentido - e só neste - que se pode dizer que o autor está sempre a escrever o mesmo livro.

O que anda a escrever, e que projectos tem para o futuro imediato?
 

Penso que os quatro livros que sairão em 2014 confirmam alguma maturidade de escrita, conseguida por uma intensa experiência estética desde há 10 anos: três ensaios (Nova Teoria do Sebastianismo, na D. Quixote; O Futuro da Religião, na Nova Vega, e Manifesto em Defesa de uma Morte Livre, na Relógio d'Água). No final do ano, sairá um romance sobre uma utopia (2384) como homenagem a Thomas More, criador deste termo há quinhentos anos (1516).

Como vê a cena cultural em Sintra e o que poderá ser feito para a dinamizar?
 

Com a regência do PSD, a cena cultural sintrense diminuiu fortemente se tivermos em conta os tempos áureos de Edite Estrela. Foram extintos os grandes congressos sobre Romantismo, Identidade Nacional, Eça de Queirós..., desapareceram imensas iniciativas, como os "Dias da Lusofonia" (salvo erro assim era designado), que tinham colocado Sintra no mapa cultural do país. A revista erudita Vária Escrita, que era o cartão de apresentação de Sintra para o mundo universitário, também desapareceu. Ficou a Regaleira e o esoterismo, o Olga Cadaval e as grandes produções que passam, distraem mas pouco formam. O turismo na serra profissionalizou-se no tempo do PSD, e pouco mais para além do clássico: o teatro e a CT de Sintra, o Festival de Sintra. Muito, muito mais poderá ser feito. Tenho esperança, sinceramente nesta nova vereação, sobretudo na longa experiência autárquica de Rui Pereira, o vereador que esteve na base do lançamento de quase todos os grupos de teatro em Sintra.

O que pensa que procura o leitor quando busca uma obra literária? O leitor é generoso ou é um ser distante e que tem de ser conquistado?

O leitor nunca é estúpido e move-se entre o apelo a uma literatura séria, que o force a pensar e a criticar as certezas instituídas pela sociedade, e o apelo a uma literatura de distracção que o liberte e o evada de uma vida diária difícil. Um bom romancista, como Saramago ou Eça de Queirós, sabe conciliar os dois pólos estéticos. Temos hoje dois óptimos exemplos em Sintra com a escrita de Sérgio Luís de Carvalho no romance histórico e de Ricardo Adolfo no retrato de uma nova mentalidade emergente da linha de Sintra.



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