quarta-feira, 5 de março de 2014

8.25- Um texto de Gonçalo Moleiro

GONÇALO MOLEIRO

 08:25. 

O comboio parte e Sintra fica, aos poucos, para trás. O verde dá lugar ao cinzento que caracteriza o território urbanizado. Depois de algum tempo sem viver este percurso, tudo parece novo.

Os estendais enchem de cor os edifícios, conferindo-lhes uma nova pele que o vento manobra conforme a sua vontade. É ao seu toque que as roupas dançam, entrelaçando-se e acrescentando confusão às fachadas gastas pelo tempo. A nova paleta de cores funde-se, assim, às varandas, às manchas esverdeadas de humidade e às marquises claramente descontextualizadas.

Começa a chover. As pessoas debruçam-se à janela na tentativa de salvar a roupa de uma nova carga de água. Também dentro do comboio, apesar de salvos da tempestade, os passageiros demonstram o seu desconforto, pedindo a todos os santos para que termine mal o corpo passe a porta da carruagem rumo ao exterior. A rua enfeita-se de chapéus de várias cores e padrões que se movem à velocidade dos passos, transformando-a num palco onde o movimento se acentua. 

Os pés escorregam na irregular calçada portuguesa mas, no comboio, contactam de modo forçado e desconfortável com as pernas e as mochilas de quem se senta nos bancos mais próximos. Fala-se de tudo, apesar de identificarmos conversas que, preferencialmente, deveriam apanhar outro comboio. Fala-se da chuva e dos males do corpo, do trabalho e dos males que caminham de mãos dadas com a nossa raça. Fala-se do mundo através de ideias oferecidas pelo horário nobre dos nossos nobres canais de televisão. 

Os muros coloridos por grafittis sucedem-se, dinamizando o rápido percurso. Consigo identificar novos desenhos. De cotovelo pousado no parapeito da janela tento ler, muitas vezes sem sucesso, as mensagens deixadas por quem as pintou. A terra e o musgo deixados pelo inverno rigoroso dificultam a minha tarefa, mostrando que a natureza tem também uma palavra a dizer. 

Ouve-se "com lincença" e sentem-se gestos bruscos em cada paragem, provas da confusão característica das entradas e saídas. As rotinas são as mesmas. A cidade que assiste à vida e é palco dela encontra-se, no entanto, em constante mutação.
 

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