domingo, 2 de março de 2014

Defesa do Património, coerência de propósitos

JOÃO CACHADO

A exemplo do convite que lhe fiz no início do mandato, em relação ao Caminho dos Castanhaes, mais uma vez venho desafiar o Senhor Presidente da Câmara para outro passeio por Sintra. Para tornar a coisa mais cómoda, uma vez que dois são os destinos, vamos considerar uma primeira etapa, bem perto do seu gabinete, até à Correnteza, e, numa segunda saída, os fontanários da velha estrada de Colares.

Sobre a razão da escolha e, porventura, se ela pressupôs algum comum traço de união, entre tais lugares a montante e a jusante do centro histórico, pois bem, como teremos oportunidade de verificar, não havendo coincidência de conteúdo, a verdade é que, tanto num como noutro caso, são os olhos, os nossos melhores aliados da percepção, que, precisamente, nos traem a correcta avaliação do estado em que permanecem tais lugares. In loco, veremos ao que me refiro.
Dentre alguns assuntos que, en passant, aproveitaria para chamar a atenção do Dr. Basílio Horta durante o percurso pela Alfredo da Costa, avulta o do Casal de São Domingos cuja visível degradação é espelho do que se passa no interior e nos infelizes anexos do jardim. É uma lástima que merece a urgência de uma intervenção adequada. 

Vale da Raposa


Então, uma vez chegados ao primeiro destino, depois de reparar que o pavimento em calçada à portuguesa, tão sugestivo no seu ondulado – que, aliás, chega a ser perigoso, exigindo manutenção permanente, já que ali decorrem feiras cujos efeitos são visíveis – debruçar-nos-emos sobre o Vale da Raposa, num dos muitos parapeitos da Correnteza, desfrutando de um dos mais interessantes panoramas de Sintra.

Estamos num local, hoje em dia aparentemente sossegado, na sequência de muita perturbação, há uns sete anos suscitada pela hipótese de aqui construir um grande centro comercial com um parque de estacionamento subterrâneo. Como se nada tivessem aprendido com a lição da Volta do Duche, movimentaram-se naquela altura algumas entidades «muito empreendedoras», aparentemente envolvendo capitais espanhóis, que se devem ter assustado quando perceberam a reacção de alguns cidadãos e organizações ambientalistas e de defesa do património, dentre os quais me considerei [vd., p. exº, JS, 17.02.2006, Vale da Raposa, estacionamento em debate e JS, 13.04.2006, Vale da Raposa em paz].

No entanto, depois desta lembrança – «et pour cause…», porquanto, por aí, sempre vão pairando sonhos de mirabolantes negociatas em mentes mais agitadas – o que mais me interessa é chamar a atenção do Presidente para o tapete de luxuriantes verdes que escondem um nojento matagal, cobrindo estruturas antigas de condutas de água, provavelmente para jardins e/ou socalcos agrícolas das antigas quintas.

É o que bem pode designar-se como a paz podre do belo horrível. Tal vegetação tomou conta de tudo. Há toneladas de silvas sob as quais habitam colónias de gordas ratazanas que, antigamente, bem se viam no seu afã de crescerem e se multiplicarem, passeando pelo vale e pelas construções adossadas aos muros de suporte. Quero acreditar que não existirá risco sanitário, algo que, no entanto, só o Delegado de Saúde poderá garantir. De qualquer modo, sob as aparências de uma diáfana beleza, o que ali se concentra é atroz e um péssimo cartão de visita para Sintra. 

Fontanários da Estrada Velha de Colares

Pessoa sensível à razoabilidade da evidência, depois de se inteirar acerca da situação e de perceber como poderá a Câmara intervir, em terreno privado, para defesa dos interesses da comunidade, tenho esperança de que o Dr. Basílio Horta actuará sem delongas. E já vamos a caminho do segundo objectivo que nos propusemos como passeio. Com o seu tempo ocupadíssimo, deslocámo-nos de carro, em direcção à Fonte dos Ladrões, entre Monserrate e a Quinta da Piedade.




Avisado de que vamos pelas fontes, ao passar pelo Chafariz del Rey, apenas abrandando um pouco a marcha, ninguém poderá deixar de considerar que, sim senhor, que bonito lugar. Abordagem mais cuidada fica para o regresso a Sintra, depois de nos deslocarmos um pouco mais abaixo. Quando, finalmente, paramos mesmo, a uns trinta metros da Fonte dos Ladrões, também de agrado é a impressão geral.

O pior nos espera à medida que, a pé, nos vamos aproximando. O quadro não é nada acolhedor. Pavimento descuidado, pilares partidos, um estado de abandono confrangedor. Que brazão é aquele em pedra? Nem mais nem menos que o da Piedosa, Senhora Dona Maria Primeira, Rainha de Portugal. Para atalhar e coincidir nestas cenas de maior desconforto, subamos, já de retorno a Sintra, para nos determos no referido Chafariz del Rey ou da Penha Verde, com pedra de armas dos Castro. Aqui o cenário ainda é mais penoso.

Terminemos com conclusões abrangentes. Quanto ao Vale da Raposa, mesmo que muito insistamos, de nada menos positivo nos apercebemos porque os olhos também de nada nos servem para avaliar o que por lá vai. Já no que respeita aos fontanários, ao longe ainda passa, mas junto aos monumentos, é um susto. Trata-se de monumentos, escrevi bem. Classificados pelo Património Nacional como tal e, em 10 de Dezembro de 2004, como imóveis de interesse municipal. Como nos permitimos trata-los como lixo? 

Enquanto que, do lado esquerdo de quem desce a Estrada Velha de Colares, a Câmara se permite a inqualificável a atitude de desleixo que a todos está patente, aviltando e ofendendo o património comum, do lado oposto da mesma estrada, a Parques de Sintra Monte da Lua tem tudo num brinquinho. Uma autarquia que se permite reivindicar autoridade bastante para recuperar o Netto, não pode fazer quaisquer concessões à facilidade, à mais descarada incúria. 

Sou daqueles que, depois de uma denúncia como esta, confio na boa vontade de que o Presidente tem dado mostras de estar animado. Oxalá não haja quem lhe faça contravapor…

João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia

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