terça-feira, 18 de março de 2014

Sintra, Festivais de Teatro e de Música em Março [II]


JOÃO CACHADO


De acordo com o anunciado na semana passada, hoje, referência à Temporada de Música 2014 Tempestade e Galanterie, que já arrancou no passado dia 8, no Palácio de Queluz, iniciativa da Parques de Sintra Monte da Lua em articulação com o Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal.
Poucas horas antes do recital, em troca de mensagens com o Maestro Massimo Mazzeo, alma mater e Director Artístico desta iniciativa, escrevia ele que o pianista “(…) Ronald [Brautigam], passou a manhã no Clementi e ficou simplesmente deslumbrado com a qualidade da manutenção feita no instrumento, assim como pela magnificência do Palácio. Tenham a vossa alma desperta para o grande prazer que o recital de hoje à noite poderá dar. (…)”

Clementi, grande vedeta

Pois, meus caros leitores, de facto, bem podia o Ronald estar perfeitamente deslumbrado… Este Clementi é do melhor que tenho ouvido, permitindo todas os matizes de abordagem. Está em condições óptimas, após a intervenção de conservação e restauro de que foi alvo. Trata-se de um instrumento com uma estrutura em madeiras de mogno, pau-santo e casquinha, construído em Inglaterra, no ano de 1810, por Muzio Clementi (1752 – 1832), fazendo parte do acervo do Palácio de Queluz por doação de Guilherme Possolo. Vale a pena citar Massimo Mazzeo, alma mater deste Festival:
“(…) Foi alvo de um “processo de recuperação e reconstituição de todas as partes físicas e mecânicas, do qual foi feito um relatório, o que aliás, não existia relativamente ao anterior restauro, feito há 15 anos”, contou. O pianoforte, relativamente ao de hoje, que é uma máquina praticamente perfeita, tem um teclado de cinco oitavas e meia - enquanto que os actuais chegam às sete e oito oitavas – portanto, de dimensões mais reduzidas, com teclas menores, totalmente concebido em madeira, ao passo que, nos nossos dias, já se usam ligas especiais” (…).
O plano de recuperação do pianoforte, cuja diferença para os pianos atuais das salas concerto (…) é como entre um Ferrari e um carro de época”, inclui uma monitorização semanal, com medições de humidade e temperatura e é regularmente tocado, mesmo que não em concerto, cabendo ao cravista e pianista José Carlos Araújo, semanalmente, tocar o Clementi", explicou, de modo a garantir a sua manutenção. (…)”

Recital do dia 8 de Março

Palácio de Queluz, Sala da Música a abarrotar, público muito interessado e, evidentemente, com a satisfação no gesto, no rosto, nos comentários durante o intervalo e no final do recital. Noite grande, da grande música dos tempos do classicismo da Primeira Escola de Viena, um evento em que melómanos atentos ganharam mais umas pedras para o edifício pessoal do seu património monumental.
Naturalmente, Ronald Bautingam que, graças a Deus, já tenho ouvido noutros auditórios, evidenciou o privilégio de o ouvirmos através desta máquina fabulosa, tão bem recuperada, tratada e mantida, que, após os seus mais de duzentos anos de vida, poderá continuar a encantar as audiências como a deste memorável serão.
Não se esqueçam que era do pianoforte, e não dos posteriores Bechstein, Bösendorf, Steinweg, Steinway ou Yamaha, o som que os compositores de setecentos tinham na cabeça quando compunham, este o som que se ouvia nas salas. E, de modo algum, se pode dizer que o piano actual é «melhor» do que um pianoforte, original do século dezoito ou réplica dos nossos dias. São máquinas diferentes, ambas fascinantes.
Quem «disto» muito sabe, muito mais do que eu e do que qualquer simples e interessado melómano, é Paulo Pimentel. Lá esteve no recital do dia 8, para que, durante o intervalo, atento e competentíssimo, procedesse a uma circunstancial, necessária e sumária afinação. Andei pelo estrado, sem perturbar, aproveitando para acompanhar aquela sua atitude de carinho sobre a peça, «pedindo-lhe» continuasse a maravilhar-nos, sempre nas melhores condições.
Permitam que, neste momento, coloque um detalhe mais pessoal neste relato. É que conheço Paulo Pimentel – bisneto do Arq. Raúl Lino, neto de D. Maria Cristina Lino Pimentel e sobrinho-neto D. Isolda Lino Norton de Matos, que, ainda nos anos oitenta, com o meu pai e comigo, faziam parte de um grupo que se deslocava, por exemplo, ao Festival de Música de Lucerna. Que saudades, meu Deus!. Ainda sobre o estrado, já depois de afinar o Clementi, lembrava ele as «conversas musicais», histórias da música e de instrumentos musicais, no escritório do meu pai, na Rua Passos Manuel, quando o Paulo era mesmo muito jovem.
Quanto ao programa do serão, a primeira peça que escutámos foi a Sonata em Si bemol Maior, Op. 24 No. 2, precisamente, de de Muzio Clementi, obra através da qual ele próprio e Mozart se «bateram em duelo musical», no dia 24 de Dezembro de 1781, suscitado pelo Imperador José II. Foi na sequência deste episódio que, na célebre carta de 16 de Janeiro de 1782, destinada ao pai Leopold Mozart, o compositor considerou Clementi um simples Mechanicus.*
A quem ainda não o conhecia ao vivo, logo Brautingam deu a entender como estava em presença de um excepcional artista, que, neste reportório, é dos mais saudados a nível mundial. Seguidamente, de Haydn, aquela que, em 1780, ele próprio considerou a maior e mais difícil Sonata que havia escrito para instrumento de tecla até à altura, a Sonata No. 33 em Dó menor, Hob. XVI/20 (1771); de Mozart, as Sonatas No. 17 em Si bemol maior, KV 570 (1789), uma das mais simples, e No. 14 em Dó menor, KV 457 (1784), cuja tonalidade indicia a pertença ao grupo das obras menos tranquilas e angustiadas do compositor – ainda que, neste capítulo, as peças em Sol menor sejam  as mais perturbantes – e, finalmente, de Beethoven, a Sonata No. 4 em Mi bemol Maior, Op. 7 (1796/7), longa, compósita, belíssima, virtuosística, um absoluto monumento da forma sonata, com um Rondo final que é um verdadeiro testamento escrito, precisamente a meio da vida (1770-1827) do compositor.
A Temporada de Música Tempestade e Galanterie continua já no dia 12 de Março [data em que escrevo este texto], contando com um recital de Kristian Bezuidenhout – estupendo pianista que tive o gosto de ouvir e ver, também em pianoforte, num recital durante a recente Mozartwoche em Salzburg – interpretando em Queluz, além de peças de Johann Sebastian Bach e de Wolfgang Amadeus Mozart, também de Carl Philipp Emanuel Bach, assinalando os 300 anos do seu nascimento. Posteriormente, seguir-se-ão concertos e recitais, no dia 16, com a Orquestra Divino Sospiro, Catarina Costa e Alexandra Campos; a 22, com Alexandre Lonquich (pianoforte) e Christophe Coin (violoncelo); a 28, com o Thalia Ensemble e, finalmente, a 29, Divino Sospiro e Pedro Burmester, sob a direcção do Maestro Massimo Mazzeo. Todo o programa é verdadeiramente imperdível.**
Claro que está de parabéns a Parques de Sintra Monte da Lua. Na realidade, de modo tão patente, continua a demonstrar que, seja qual for a área cultural em que se envolva – como esta, de promoção de eventos no domínio da tão sofisticada e específica música do período setecentista – sempre demonstra a alta qualidade do seu empenho.
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*Não há qualquer testemunho escrito acerca de quem terá ganho a competição mas, isso sim, o rumor segundo o qual o Imperador teria feito uma aposta com a Grã Duquesa da Rússia, Maria Feodorovna, em como Mozart venceria… A verdade é que, na ocasião, José II ofereceu a Mozart um presente de 50 Ducados. Para terem uma ideia do valor actualizado, segundo recente investigação: - 1 ducado continha 4 ½ Gulden. No tempo de Mozart, 20 Gulden equivaleriam a um poder de compra actual de cerca de £350. Tal significa que o presente do imperador rondaria cerca de 3800 libras actuais. De facto, um presente imperial…

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