segunda-feira, 23 de junho de 2014

Ferreira de Castro evocado por Miguel Real

MIGUEL REAL


FERREIRA DE CASTRO

“A Experiência” – um notável romance

Quarenta anos após a morte do autor, a editora Cavalo de Ferro e o editor Diogo Madre Deus, em colaboração com Ricardo A. Alves, director do Museu Ferreira de Castro, em Sintra, decidiram dar novo alento à obra de Ferreira de Castro publicando de novo a sua obra, há muito desaparecida dos escaparates das livrarias.

Caso o leitor queira revisitar a obra de Ferreira de Castro, pode começar – e começa muito bem – por um dos romances recentemente reeditados, A Experiência, publicado em 1ª edição em 1954. Tal como Os Emigrantes ou A Selva, A Experiência constitui, de facto, uma notável síntese do estilo e da visão do mundo do autor.

Dividido entre duas correntes estéticas complementares, o Naturalismo e o Realismo, ambas datadas da primeira metade do século XX, prolongamento de experiências literárias do fim de século anterior, Ferreira de Castro harmoniza sabiamente estas duas vertentes literárias, conjugando-as, de um modo superior, com os ideais humanistas da igualdade e da justiça sociais do Anarquismo, sua permanente visão política da sociedade e do homem.

Do Naturalismo, Ferreira de Castro recolhe os aspectos patológicos e perversos da sociedade (a prostituição; a miséria social sem redenção; as doenças venéreas; a velhice sem consolo nem remédio; a necessidade do roubo como modo de sobrevivência numa sociedade que é ela toda uma extorsão do trabalho dos pobres e assalariados; os ambientes pútridos das cadeias; os ambientes corruptores da juventude da vida nos asilos de mendicidade…). Do Realismo, recolhe o retrato narrativo da injustiça social, da opressão dos pobres pelos ricos, do fatalismo de uma vida nascida em miséria contra os privilégios dos embalados em berços de ouro e a necessidade de revolta e de luta política contra as instituições repressivas do Estado.

Assim se compõem as vidas de duas crianças aziagas caídas na infância num asilo: Januário, menino que, em adulto, por amor se tornará ladrão e criminoso, e Clarinda, menina desonrada e engravidada pelo filho da Dona Ludovina, dona da casa para onde foi trabalhar como criada após o encerramento do asilo.

Neste, dirigido por legado testamentário por um professor de Filosofia, tentara-se uma “experiência” educativa fundada na liberdade e no senso de justiça das crianças, educando-as segundo os ditames mais nobres da consciência moral. Porém, por contrário aos costumes e aos interesses das famílias poderosas, quer dizer, ricas, que têm no conjunto de crianças órfãs uma reserva de mão-de-obra para o trabalho nas suas casas e quintas, o asilo foi entregue a freiras e posteriormente fechado e restaurado pela Câmara como prisão. Januário, que em pequeno habitara o asilo, habita agora a novel prisão.

O estilo de Ferreira de Castro em A Experiência cruza aqueles dois tempos diferentes, intercalando-os por via da memória das personagens que, partindo de uma situação futura, uma nova e consumada evolução na sua vida, relatam os acontecimentos do passado.

Em A Experiência, existe uma concepção fatalista da História, no sentido de que estruturas sociais injustas criam e reproduzem vidas individuais infelizes, de que não só ninguém está a salvo como, por mais boa vontade que haja ou se tenha, não se consegue fugir. Esta concepção é sobretudo defendida no tribunal pelo advogado Macieira, uma personagem que, convivendo à mesa com os ricos, é, no entanto, envolvido tanto uma piedade cristã quanto por um desejo de igualdade entre todos os cidadãos.

Nasce assim a necessidade de uma revolução social, que “há-de vir um dia em que haverá pão para todos” (última frase do romance).

No último capítulo, o amor sobressai e vence a injustiça social e Clarinda confessa que esperará pela saída da prisão de Januário para recomeçarem a vida.

Romance tecido de miséria, perversão individual, exploração social e económica e profunda opressão sobre quem nasce pobre.



A Experiência,

Cavalo de Ferro, 224 pp. 13,50 euros.

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