sábado, 7 de junho de 2014

Vermelhos e Azuis

FERNANDO MORAIS GOMES


Desde que voltara de Angola, retornado do império, Alípio Gomes não mais saíra do país. Bancário, casado e sem filhos, dividia o tempo entre o balcão de Pêro Pinheiro e despreocupados verões  na  Manta Rota, num apartamento alugado à época. A sua grande ocupação era a construção duma vivenda no Sabugo, a dez  minutos  do emprego, onde com Adelina passaria o fim dos seus dias, tranquilo, os cinquenta  iam pesando já.

Certo dia, durante um almoço de colegas, empolgados pela conversa e pelo Old Parr, um grupo do banco combinou ir a Milão ver o Benfica com o Inter, na era Camacho, depois do jogo aproveitariam para três dias em passeio. Benfiquistas ferrenhos,  passavam os almoços lembrando jogos de outros tempos, os mais empolgantes sempre contra os lagartos, se bem que o Antunes da contabilidade, leão acérrimo, sempre lembrasse os 7-1 do tempo de Manuel José. Adelina não gostou muito da ideia, quatro homens em Itália não era algo que lhe agradasse muito, mas lá anuiu, a promessa de perfumes e chocolates amenizou o facto de ficar sozinha. Mas teria de lhe ligar todos os dias, e agasalhar-se, que estava a nevar, bem vira na televisão, levar gorro e luvas, e medicamentos para a azia, as pizzas não a convenciam.

Até partirem, os dias foram passados a combinar detalhes, e em sussurro, as facadinhas no matrimónio que haveriam de dar. Mal chegassem  seria tiro e queda, dizia o Amaral, a barriga obesa da imperial e tremoços a comandar as operações, as caras metade ficariam em casa a ver novelas. À cautela, Alípio  até comprou uma caixa de Viagra, nunca usara, mas à solta em terras de Sofia Loren não passaria o tempo  apenas a ver o Scala de Milão, há muito que nem à noite saía, só para visitar o sogro na Azambuja.

No dia aprazado lá partiram livres das mulheres, os colegas que não iam a desdenhar das alegadas facadinhas, já no aeroporto, juntaram-se à parafernália de cachecóis dos lampiões, prometendo quatro golos sem resposta.

Em Milão nevava copiosamente e batedores da polícia aguardavam para conduzir os autocarros com a falange do Glorioso ao estádio, ao som de “Benfica!” e “SLB!”. Desafiador, um fã do Inter profetizava 2-0 com os dedos em riste. O jogo foi logo nessa noite, com o Giuseppe Meazza a abarrotar de lampiões, numa enorme faixa lia-se “Pêro Pinheiro presente”, ideia do Pascoal. Já a viagem na Alitália deixara as hospedeiras atarantadas com os gritos de guerra prometendo a vitória dos encarnados, Milão que se cuidasse que não ia ser ópera, mas baile…

O jogo foi renhido, mas contas feitas, o Inter, desmancha-prazeres, acabou ganhando 4-3, a partir de Lourel o Antunes enviava mensagens pelo telemóvel, foram de carrinho mas viriam de carroça. Depois do balde frio inicial, era preciso afogar as mágoas e partir à caça das ragazzas, por certo ansiosas pelos temerários portoghesi, todos primos do Cristiano Ronaldo, menos na barriga, na careca e no resto.

Mais viajado, o Pascoal descobriu um bar com show erótico, do varão para o sofá e do sofá para a felicidade. Com ar maroto, o Alípio esfregou as mãos, um Viagra azul estava já de parte. Não que precisasse, ia apregoando, mas por causa das tosses, nada como fazer para melhorar a performance, no fim, elas é que pagariam para estar com eles, iam ver. A Adelina não deu por ele os ter comprado, era uma semana de liberdade e a vida são dois dias, afinal. Um contratempo, porém: no dancing não aceitavam cartão, só cash, e juntos não tinham euros que chegassem. Foram a outro, mas novo percalço: entrada só com sapatos de couro, o Barbosa, suburbano, ia de ténis, coisa de pobre, chingou o Alípio, tinha de ser ele a estragar a festa. Num outro, sugerido por um polícia, os preços eram caros, e até para tocar nas bailarinas havia que pagar, o table dance era mais caro que nos bares de alterne lá da zona. Com a coisa complicada, acabaram por ir para o hotel e alugar filmes para ver nos quartos.

No dia seguinte, a descoberta de Milão e partida para o Lago de Garda, uma paisagem de postal salpicada de pitorescas aldeias. Aí chegaram noite cerrada, o hotel era num vilarejo onde fechava tudo às dez, bebidas só no hotel, ficaram à conversa sobre a equipa do Benfica dos anos sessenta com o barman. Adiado, o comprimido azul era um peso morto na bagagem. No último dia, de volta a Milão, com o dinheiro escasseando, a miragem da facadinha era cada vez mais miragem, ao Antunes haveriam de inventar cenas tórridas, para o lagartão se babar de inveja.

Apesar dos dias bem passados, a prometida investida transalpina ficou-se pelo convívio. Valera a pena, apesar de tudo, no avião de regresso até encontraram o Toni, velha glória dos encarnados.

De volta à rotina e entregue a prenda à Adelina, os relatos no bar do Hélder asseveravam a facilidade com que haviam conquistado a Itália, apesar do penalty que não foi penalty. Nos dias seguintes, o quotidiano do banco, as baboseiras do Antunes, o regresso às obras no Sabugo. 
Uma semana mais tarde, ao jantar, a Adelina apareceu branca como a cal da parede:

-Estás bem, amor? Já eram saudades do maridinho, não eram? -confortou Alípio, dando uma garfada no bife.

-Não, não. Não sei o que tenho, estou com uma enxaqueca terrível. Olha, de manhã até tomei um comprimido azul daqueles que levaste a  Milão. Mas não ajudou, acho até que fiquei pior!

Quase engasgado e com o bife entre dentes, correu ao quarto e escondeu as malditas embalagens numa caixa de sapatos, faltava só um, felizmente. Não tinha havido aventura italiana, mas, ou se enganava muito ou uma noite  acalorada vinha pela frente naquele frio Abril do Sabugo.

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