segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A guerra do soldado Avelino

FERNANDO MORAIS GOMES



Avelino nunca saíra de Fontanelas, feliz entre as vacas e hortaliças que diariamente levava à Malveira, a chamada à tropa, ainda mal fizera dezoito anos, deixou os velhos pais em cuidado, aflita, a Anacleta acendeu uma vela pelo seu cachopo. Em 1916, Portugal entrara na Grande Guerra, e depois de uma recruta apressada, Avelino era mandado para o Corpo Expedicionário, integrando o Corpo de Artilharia Pesada Independente, composto por três grupos mistos de baterias de artilharia pesada.



Em Janeiro de 1917 lá embarcou para França, chegando a Brest em Fevereiro, e só em finais de Abril chegou às trincheiras. Não entendia aquela guerra, apenas que detestava a ração inglesa e o frio, contrastante com a brisa de Fontanelas. O tempo foi passando, escutando o matraquear da artilharia e esculpindo varinhas com uma navalha. Ao fim de um ano na frente, nunca gozou uma licença, sendo analfabeto, jamais escreveu à família. Em casa, a mãe temia, os ataques com gás pimenta podiam ser fatais, agoirava Venâncio, o regedor.



Na frente viu tombar camaradas, ao Gervásio, da sua brigada, que lhe morreu nos braços, ficou com o relógio, para entregar ao filho, em Palmela, pediu-lhe à hora da morte. O general Tamagnini nada informava sobre as operações, mas sentia-se que as coisas estavam mal.



Certo dia, o general Haking, mandou a Divisão de Avelino tomar novas posições. À sua brigada competia guarnecer três linhas de trincheiras e a linha de defesa baseada em baluartes ao longo de 40 quilómetros. A norte dos portugueses, estava a 40ªDivisão de Infantaria britânica, a sul, a 55ª.



Pelas quatro da manhã de 9 de Abril de 1918, estava a brigada de Avelino estacionada junto à ribeira de La Lys, entre Gravelle e Armentières, quando os alemães desencadearam uma barragem de artilharia com mais de duas horas de duração. Emboscados, os portugueses, mais de quinze mil, viram-se subitamente em combate, subordinados ao Corpo Britânico, comandava-os Gomes da Costa. Oito divisões do 6º Exército Alemão, com 55 000 homens, comandados pelo general von Quast lançavam a operação Georgette, visando tomar Calais e Boulogne-sur-Mer. Desorganizados, em apenas quatro horas perdeu-se um terço dos efectivos, bem como 327 oficiais. Desesperados, os alemães queriam abrir um flanco, e o sector português era o sítio adequado.



Na trincheira, sob fogo cruzado, Avelino rangia os dentes e fazia fogo com a Lewis, a Luísa, como chamava à sua metralhadora, parecia dia de círio, tal o foguetório, assassinas, as balas  cruzavam os ares, de forma alucinante. Ao seu lado, o Ramires e mais três tombaram mortos, o Tomé, polidor em Loures, gritava, atingido por uma bala. Ao fim de uma hora, só Avelino restava vivo na trincheira, deambulando entre os mortos, recolhendo cunhetes de balas que foi tirando de camaradas, só pela noite, extenuado e ferido, se conseguiu reunir ao 8º Batalhão. Arrastando-se, conseguiram chegar ao hospital de Saint Venant, pejado de feridos, e aí, ardendo em febre, pôde enfim descansar. Tinha um lenho na perna, mas não inspirava cuidados. Ao passar pela sala de tratamentos, ouviu chamar o seu nome, em português:



-Avelino!



Espantado, viu um jovem franzino, deitado numa maca com um braço esfacelado esperando para ser operado, o ar sério do médico prenunciava uma amputação. Era o Sebastião Trina, de Lourel, companheiro de cavalhadas em Sintra, ignorava que também estivesse na Flandres.



-Sebastião. Que te aconteceu, homem? – apesar de ferido,  e a arrastar a perna, Avelino  foi abraçá-lo, no ar angustiado do amigo,  pinga-amor de Sintra, anteviu mais um estropiado, sorvido por uma guerra alheia e perseguido por gente que nunca lhe fizera mal. O destino tecia a sua teia, e, nesse dia, marcou encontro nas margens do La Lys.



No terreno, a seriedade da situação levou o General Haking a chamar os reservistas para ajudar a 3ª Brigada portuguesa a conter o inimigo. O 1º Batalhão do King Edward's Horse e o 11º de Ciclistas foram enviados para Lacouture, onde se uniram aos portugueses dos 13º e 15º Batalhões, para defender a vila. Lacouture resistiu 26 horas, mas caiu a 10 de Abril, tendo os alemães capturado 168 portugueses e 77 britânicos. Nesse dia negro, os portugueses sofreram sete mil e quinhentas baixas, entre oficiais e soldados, 398 tombaram e mais de seis mil foram aprisionados. Em perda, os alemães ainda conseguiram abrir uma brecha de cinco quilómetros nas linhas aliadas, desmoralizadas, as 1ª e 2ª Brigadas da Infantaria portuguesa retiraram a 13 de Abril para uma nova linha de defesa, entre Lilliers e Stennberg. O comando britânico ainda enviou duas divisões para fechar as linhas aliadas, mas, para os portugueses, a batalha estava acabada.



No mês seguinte, Avelino e Sebastião foram evacuados para Portugal, sem um braço, o choro convulsivo da mãe recebeu Sebastião no seu regresso a casa. Para Avelino, uns arranhões apenas, e uma cicatriz a lembrar a guerra.



Já recuperado, foi a Palmela. Num mísero casebre, uma mulher do campo e um rapaz descalço receberam-no, sem saber quem era o estranho que os visitava. Sem corda, parado no tempo, o relógio do Gervásio foi enfim entregue ao filho, orgulhoso do pai herói, que pelos outros deu a vida que não vivera.


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