segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A roda dos expostos da Santa Casa da Misericórdia de Sintra

CARLOS MANIQUE DA SILVA
Fundada em 1545, a Santa Casa da Misericórdia de Sintra assumiu ab initio um papel decisivo no auxílio aos mais desfavorecidos do concelho, destacando-se a sua intervenção junto dos enfermos pobres. No entanto, outros grupos da sociedade foram também alvo de preocupação, a exemplo das órfãs, dos presidiários e, mesmo, dos expostos. Nas próximas linhas darei especial atenção a este último grupo, isto é, ao das crianças enjeitadas abandonadas nas rodas dos expostos.[1]
No caso da Misericórdia de Lisboa sabemos que, no ano de 1543, houve uma recomendação no sentido de a instituição tomar conta dos enjeitados a cargo do Hospital Real de Todos os Santos. Por outro lado, em relação ao concelho de Sintra, é também possível ter uma ideia do que foram os primeiros passos no apoio às crianças enjeitadas. Há, de resto, um documento de arquivo que faz alguma luz sobre essa realidade. Refiro-me a uma carta do rei D. Sebastião, datada de 7 de dezembro de 1574[2]. Trata-se, em bom rigor histórico, de uma sentença a favor da Misericórdia de Sintra e contra o Conselho Municipal da vila, sendo determinado que à Confraria não incumbia a criação das crianças enjeitadas.[3] Percebe-se, no entanto, da leitura do citado documento, que esse procedimento era comum (embora voluntário) pelo menos desde os tempos de Rui Gonçalves da Penhoranda (provedor, por cinco vezes, entre os anos de 1552 e 1573).   
Não obstante as rodas dos expostos se generalizarem a partir de finais do século XV, designadamente com o surgimento das Irmandades da Misericórdia, a verdade é que a sua oficialização só acontece na segunda metade do século XVIII, precisamente em 24 de maio de 1783 (reinado de D. Maria I). É então determinado que em todas as cidades e vilas do Reino haveria casa da roda, situada em lugar discreto e tendo sempre disponível uma rodeira para receber os expostos.[4]
É útil referir que, até ao início do século XIX, as formas mais ou menos institucionalizadas de assistência aos enjeitados não encerram uma preocupação central com a criança. Com efeito, é ao longo da referida centúria que a criança se torna o alvo prioritário de uma ação filantrópica. Por exemplo, o movimento de beneficência pública que se estende de França a Portugal tem as suas consequências mais visíveis a partir de 1834, ano em que se assiste à criação da Sociedade da Instrução Primária e da Sociedade de Beneficência para as Casas de Asilo da Primeira Infância; em causa, a ideia do desenvolvimento da criança evitando desvios (proteção).
Regressando à determinação de D. Maria I, cabe dizer que a mesma foi reafirmada em 5 de junho de 1800, através de um ofício assinado pelo então Intendente-Geral de Polícia, Diogo Inácio de Pina Manique. O documento em questão acrescentava que as casas para os expostos deviam situar-se em lugar bem ventilado e sadio, entre outras orientações.[5]  
Não há informação precisa sobre a data do estabelecimento oficial da roda dos expostos da Santa Casa da Misericórdia de Sintra.[6] Porém, é possível balizar a sua criação entre os citados documentos emanados em 1783 e 1800 e o primeiro livro de registo da entrada dos expostos que remanesce no Arquivo Histórico da Misericórdia (iniciado em 1816). Talvez por prática que vinha de períodos mais recuados, entre março de 1816 e maio de 1819, todos os expostos entregues na roda da Misericórdia de Sintra são conduzidos ao Hospital de Lisboa.[7] A partir do último mês e ano referidos, o Arquivo da Misericórdia possui alguns registos da entrada e despesa com os expostos, embora seja difícil estabelecer séries com continuidade, devido a várias lacunas.[8]   
O funcionamento das casas dos expostos obedecia a procedimentos uniformizados. O modo como o exposto era entregue (de forma anónima) deixa transparecer uma estadia curta ou transitória e nunca definitiva. A aposição à criança de objetos (laços, medalhas, moedas, brincos, etc.) ou de documentos é algo mais do que um sinal; trata-se, de forma mais exata, de uma marca, significando que a criança tem uma origem, alguém que dela não se pode ocupar, mas que a identifica como Ser.[9] Apesar de ser muito importante o objeto identificador da criança, sucede que, por vezes, os vários elementos descritos nos documentos (na sua maioria referentes à indumentária) serviam como verdadeiros sinais. Atente-se na transcrição do seguinte bilhete:     
 Nasceu no ano de mil e oitocentos e vinte e sete. Leva esta criança duas camisas novas […] touca e lenço do mesmo como fitas cor-de-rosa acetinadas em volta, uma toalha fina […] uma camisa, um vestido de chita cor-de-rosa novo, dois cueiros de baeta amarela novos […] lhe procurarão uma ama capaz que seja boa. A seu tempo se aí vai buscar [a criança exposta] levando todos estes sinais.[10]
 
     Documento I – Reprodução do bilhete escrito que acompanhou uma criança do sexo masculino entregue na roda dos expostos da Misericórdia de Sintra, em 26 de março de 1837.
É a censura moral e social imposta à manutenção de crianças ilegítimas numa família ou, mesmo, as condições de miséria que tornam habitual a prática acima transcrita; possibilitava-se assim a proteção do anonimato a alguém que optava por um “agente” intermediário para sustentar tal encargo.[11]
Com a entrega da criança na roda iniciava-se um novo ciclo, sendo que o objetivo era o de colocar rapidamente o exposto aos cuidados de uma ama. Porém, como muitas crianças não estavam batizadas, era necessário ministrar esse sacramento. No caso das crianças expostas na roda da Misericórdia de Sintra, o batismo tinha lugar na Igreja de S. Martinho. Era, de resto, habitual a adoção do nome do santo do dia da exposição.
No período que mediava entre a receção do exposto e a entrega à ama, era à rodeira que incumbia a alimentação da criança. As más condições de higiene, as doenças infeciosas (varíola, sarampo…) e as próprias circunstâncias em que era efetuado o transporte faziam com que um elevado número de expostos falecesse nos primeiros dias ou meses de vida. Veja-se, por exemplo, que entre 5 de novembro de 1835 e 8 de julho de 1841 entraram na roda da Misericórdia 125 crianças (73 rapazes e 52 raparigas), sendo que desse total viriam a falecer 37.[12]
Por outro lado, tenhamos em conta que a alimentação da criança exposta provinha de uma estranha, privando-a do afeto e da identificação física com a mãe natural. Era, pois, das amas que dependia em larga medida a sobrevivência dos expostos, não sendo de estranhar que se exigisse que tal função fosse desempenhada por mulheres jovens, sãs e de bons costumes. Sabe-se também, no caso da roda da Misericórdia de Sintra, que poucas amas eram internas. De facto, conforme se pode constatar pela leitura do Documento II, havia um conjunto significativo de amas que estava disseminado por todo o concelho.


     Localidade / Residência

    N.º de Amas

Linhó

3

Ranholas

1

Almoçageme

1

Sabugo

2

S. João das Lampas

1

Montelavar

4

Bolelas

1

Peroleite

1

Cabeço da Moucheira

1

Penedo

8

Seixal

1

Carrascal

1

Mercês

1

A-do-Longo

1

Moucheira

1

Outeiro da Moucheira

1

Alvarinhos

1

Sintra

2

Mem-Martins

1

A-dos-Francos

1

Serradas

1

Eugaria

3

Algueirão

1

Amoreira

1

Ulgueira

1

Boca da Mata

1

Nafarros

1

Morelinho

1

Cheleiros dos Serrados

1

S. Pedro

1

Azenhas do Mar

1

Cabrela

1

S. João das Lampas?

1

“31 de maio”

1
Documento II- Número de amas por localidade com expostos (até à idade de 7 anos) a cargo da Misericórdia de Sintra, entre 1 de julho de 1840  e 30 de Junho de 1841 (Arquivo Histórico da Misericórdia de Sintra, Livro  para  os  os Assentos e Contabilidades dos Expostos, 1830-1850).
As amas, no entanto, eram alvo de controlo (visitas anuais), sendo também exigido que não tivessem mais de um exposto para aleitar (disposição que, por vezes, acabava por não ser cumprida na íntegra).[13]
Até aos sete anos de idade os expostos estavam à guarda das amas, as quais auferiam um vencimento mensal, além de uma quantia que lhes era entregue anualmente (destinada ao enxoval das crianças a seu cargo). Uma vez atingida a referida idade, antevia-se um percurso algo incerto. De facto, as opções podiam passar pela recuperação do exposto, pela adoção ou, mesmo, pela possibilidade de a criança continuar com a ama, se esta assim o entendesse. Porém, esta última hipótese era muito remota, já que, por via de regra, as amas deixavam de receber gratificação.
Não se verificando qualquer uma das situações acima descritas, os expostos ficavam sob tutela do juiz dos órfãos, sendo emancipados aos vinte anos. Era comum os rapazes trabalharem como “moços” até completarem a idade de doze anos, recebendo como contrapartida a alimentação, o vestuário e o calçado. A partir de então, era estabelecido um pagamento (soldada) e iniciavam frequentemente o aprendizado de um ofício mecânico. Por outro lado, as raparigas acabavam por ficar praticamente limitadas a uma saída, ou seja, trabalhar como criadas em casas particulares.  
Interessa dizer que a Misericórdia de Sintra concedeu um importante apoio a alguns expostos maiores de sete anos de idade que não foram recuperados pelas famílias (ou outrem), nem alvo de adoção. Na verdade, a Mesa Administrativa da instituição atribuiu gratificações a amas no sentido de continuarem a tratar dos expostos (findo, pois, o prazo legalmente estabelecido para o seu cuidado), procurando, inclusive, orientá-los mais tarde para uma atividade específica. Por exemplo, em relação a este último aspeto, há notícia de três expostas de idades compreendidas entre os dez e os catorze anos que, em julho de 1838, trabalhavam como criadas em casas particulares situadas em Meleças. Neste caso específico, a Misericórdia tinha o encargo de vestir as expostas até completarem os catorze anos, recebendo posteriormente gratificação consoante o seu desempenho.[14]
De um estabelecimento formal ocorrido entre os finais do século XVIII e os inícios da centúria seguinte, a roda dos expostos da Misericórdia de Sintra conheceu maior atividade nas décadas de 1830-1840; nesse período, apresentou-se como uma estrutura local com alguma capacidade de resposta.
No último livro de entrada dos expostos existente no Arquivo da Misericórdia (datas extremas: 1855-1864), a esmagadora maioria dos registos indica que as crianças foram conduzidas à Misericórdia de Lisboa.
Em 27 de novembro de 1865, a Mesa Administrativa da Misericórdia solicitou ao governador civil de Lisboa a conservação da roda dos expostos.[15] No entanto, tal pedido não impediu que, em 19 de novembro de 1866, ficasse registado em acórdão da Mesa a extinção da roda por ordens superiores.[16] 







[1] Expor, na linguagem da época, significava abandonar. A roda consistia num mecanismo em forma de tambor ou portinhola giratória, embutido numa parede, permitindo o anonimato de quem expunha uma criança. 


[2] Arquivo Histórico da Misericórdia de Sintra, Livro 2.º do Registo das Escrituras, fl. 71 v.


[3] Desde o século XVI, com as Ordenações Manuelinas, que os conselhos municipais tinham a obrigação de prover a criação de órfãos e expostos.


[4] Cf. Joel Serrão, Dicionário de História de Portugal, 1985, vol. II, p. 511.


[5] Cf. Carlos Andrade Teixeira, “Apontamento para o Estudo da Casa dos Expostos de Cascais”, Arquivo de Cascais, n.º 5, 1984.


[6] A referência à roda dos expostos da Santa Casa da Misericórdia tem um sentido abrangente, isto é, deve ser entendida como a “roda de Sintra”. A primeira designação ficará a dever-se à localização da roda (melhor dizendo, à casa dos expostos), e não apenas à responsabilidade institucional. De facto, parece ser verosímil que a casa dos expostos estava localizada no Hospital da Misericórdia, conforme registo de 1835 exarado a fl. 1 r. do Livro da Entrada dos Expostos, n.º 17.  


[7] Cf. Arquivo Histórico da Misericórdia de Sintra, Livro que serve para o Assento dos Expostos nesta Santa Casa, n.º 16, fls. 3 r. - 4 r.


[8] A documentação de arquivo permite saber o movimento dos expostos entre 1816-1831, 1836-1841 e 1855-1864.


[9] Cf. Sinais de Expostos, Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 1987.


[10] Documento avulso do Arquivo Histórico da Misericórdia de Sintra.


[11] Cf. Sinais de Expostos, Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 1987.


[12] Cf. Arquivo Histórico da Misericórdia de Sintra, Livro da Entrada dos Expostos, n.º 17.


[13] O mencionado Livro para os Assentos e Contabilidades dos Expostos, 1830-1850, deixa perceber que havia amas que tinham mais de um exposto ao seu cuidado.


[14] Cf. Arquivo Histórico da Misericórdia de Sintra, Livro para os Assentos e Contabilidade dos Expostos, 1830-1850.


[15] Cf. Arquivo Histórico da Misericórdia de Sintra, Livro 25 dos Acórdãos da Misericórdia de Sintra, fl. 255 v.


[16] Cf. Ibidem, fl. 263 r. No ano de 1866 é também encerrada a roda dos expostos de Alenquer e, por Decreto de 21 de novembro de 1867, são formalmente extintas todas as rodas e criados, em sua substituição, hospícios. Todavia, a roda dos expostos da Misericórdia de Lisboa mantém-se em funcionamento até 1870.

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