segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Missa das 10 em S.Martinho

FERNANDO MORAIS GOMES

Desde criança Roberto se habituara àquelas rotinas domingueiras: a missa das 10 em S. Martinho, com a avó Sara, a catequese com o padre Mateus, nariz de gavião, sempre a ameaçar com o Inferno, o pecado de brincar nas aulas de Moral, desfilara até de anjinho numa procissão, enfiado num fato de cetim com asas brancas que a Ermelinda cosera. Com os anos, afastara-se da igreja, apenas revisitada para casamentos e funerais. Era como voltar a um sítio estranho, desconhecedor da liturgia moderna, embora fascinado pelos vitrais e pela talha dourada, nisso se revia, mais pela mão do homem que pelos totens que os artefactos significavam.

Passados os quarenta, e já separado de Matilde, voltou a passar o Natal com a mãe, em Sintra. Devota, D. Idalina não dispensou a missa matinal em S. Martinho, no dia seguinte ao Natal, e a custo para ela arrastou Roberto e o pequeno Fábio. Rendido ao espírito da data, Roberto lá se deixou levar, mal não faria, o prazer dum momento com as três gerações, normalmente separadas, levou-o a ceder, se bem que aguardasse sentado numa cadeira do fundo, contemplando os santos e absorvendo o cheiro a flores.

Na sacristia, a velha Almerinda trocava as jarras e ia acendendo as velas antes da missa, num ritual de anos, desde que enviuvara. Roberto deixou-se a contemplar o ritual dos preparativos, na Expo, onde morava, nada disto havia já, o silêncio da igreja tranquilizou-o, logo interrompido pela necessidade de fumar um cigarro. Tardando a missa, e deixando avó e neto sentados, saiu a ver as vistas, quando vislumbrou o Gregório, velho colega do liceu. Há muito o não via e correu a abraçá-lo, recordando os anos de ambos nos juniores do Sintrense:

-Gregório! Então, pá? Há quantos anos! Estás na mesma, velho amigo! Essa barriguinha é que…- Roberto ficou feliz de o rever, já pelos quarenta, também, há anos não se encontravam. Soube que tinha ido para Filosofia, ele seguira Económicas, mas acabara jornalista, em Lisboa. Com o filho viera passar o Natal, para o miúdo estar com a avó, o pai falecera há poucos meses e sentiu-se na obrigação de passar a quadra com a mãe e o filho.

-Venham de lá esses ossos, grande Roberto! -o Gregório, com uma cara abolachada e óculos de massa, abraçou o amigo, uma barba rala e  esbranquiçada era a principal diferença que lhe notava, de resto estava igual, com aquele ar engatatão que levara à certa as miúdas de Sintra nos bons anos noventa - Vais à missa? -questionou o Gregório, vendo-o à entrada de S. Martinho.

-Que remédio!. A minha mãe teimou, e sabes, com a idade, é melhor fazer-lhe a vontade. Para mais está com o neto. Eu, igrejas, é como o diabo da cruz. Vim para aqui fumar um cigarro….

Gregório sorriu, insistindo com o amigo:

-Deixaste de acreditar em Deus, Roberto? Tu, que eras o anjinho favorito do padre Mateus? - Gregório provocou o amigo, que dava uma passa no cigarro quase terminado. Roberto teorizou:

-Nunca leste o Christopher Hitchens? Escreveu aquele livro "Deus não é grande – como as religiões envenenam tudo". O gajo descrevia-se como um crente nos valores do iluminismo, e achava que o conceito de Deus ou de um ser supremo é uma crença totalitária que destrói a liberdade individual. Só a livre expressão e a investigação científica deveriam substituir a religião como um meio de ensinar ética e definir a civilização humana. Estou como ele!

Gregório fez uma pausa, e pondo a mão no ombro do amigo retorquiu:

-Sabes, Roberto, é mais fácil meter Deus debaixo do tapete que eliminá-lo para sempre. Porque, agnósticos, ateus ou meramente revoltados, todos somos capturados pela ideia de Deus desde que nascemos, e quando achamos que o podemos tratar por tu, já ele nos moldou o ser e o comportamento, desde quando ainda nem disso tínhamos noção. Assim, negar Deus é sempre uma atitude reactiva, nunca pró-ativa. Não se discute Deus, nega-se ou venera-se, e esse tipo de atitude é sempre irracional. Daí que o ateísmo nunca possa ser científico, mas apenas uma corrente de negação, uma moda, se quiseres.

-Pessoalmente, meu velho, a minha postura é: não acredito em Deus!. E o bosão de Higgs acabará por o “matar”, enquanto chave do universo. Contudo, uma coisa é certa: acredito nos que acreditam. O homem é um ser de crenças. É aliás o único animal que distingue a água da água benta, como alguém um dia escreveu. Muitos dos que buscam respostas para as inseguranças, refugiam-se em algo a que chamam fé, e quando os seus desejos por conjugação de factores inesperados ocorrem, chamam a isso milagres. Acontece o mesmo nas ortodoxias comunistas, com outros santos, altares e sacerdotes. Vê lá a Coreia do Norte! O Freud já explicou isso tudo!

Gregório sorriu, indulgente. Com o sino da torre da Vila a dar as dez, olhou o relógio e apressou-se, combinando com Roberto voltarem a ver-se em breve e deixando um comentário final:

-Será negativo acreditar e ter fé? Quando a fé contribuir para acentuar valores como os da liberdade, livre arbítrio e solidariedade, nada a apontar. É certo que em seu nome se matou e destruiu, em nome de fanatismos a que se chamou fé, e intolerâncias a que se chamou conversão. Há muita floresta para lá de certas árvores, meu velho. Dá um beijo à tua mãe e ao teu filho! Se calhar ainda os vou ver por aí…

Voltando para a porta da igreja, já repleta lá dentro, a missa estava prestes a começar, Fábio, compenetrado e em silêncio, sentava-se na fila da frente com a avó. Terminando o cigarro, Roberto deixou-se estar à entrada, em pé, mirando aquele cenário e cheiro que até aos catorze lhe havia sido familiar. Disparando, a música do órgão precedeu o início da missa e todos em pé saudaram a entrada dos celebrantes. Curioso, Roberto espreitou, a ver se o padre Mateus ainda estava na mesma, vindos da sacristia, nenhum dos três vultos se parecia com ele. Aproximou-se um pouco e atrás dumas vestes brancas, com uma sobrepeliz verde, reconheceu o Gregório. O velho amigo com quem palestrara momentos antes, era afinal o pároco de S. Martinho. Aproximando-se das filas do meio, sorriu para o antigo companheiro, que, abrindo os braços e dando início à missa, lhe piscou o olho, cúmplice, como quando marcavam golos no velho campo do Sintrense:

-O Senhor esteja convosco! -saudou o padre Gregório.

-Ele está no meio de nós! -respondeu a assembleia, em coro, acompanhada por Roberto, sussurrando. Uma missa de vez em quando não faria mal, por certo.

sábado, 27 de setembro de 2014

Um italiano em Portugal

RUI OLIVEIRA


De seu nome Leonardo Torriani ou Torreano, na sua versão aportuguesada, foi um engenheiro e arquiteto militar que chega a Lisboa na comitiva de Filipe I de Portugal e Segundo de Espanha. Natural de Cremona, na atualidade uma comuna da região da Lombardia, mas que na época, isto é, finais do século XVI, integrava o famigerado Sacro Império Romano-Germano. Temos notícias da sua presença no Termo do Concelho Senhorial de Belas, concretamente nas Águas Livres, em Carenque, conjuntamente com o Rei D. Filipe I, que desta maneira averiguavam in loco as condições em que nasciam as águas, a sua abundância, a sua qualidade e os custos de as voltar a conduzir a Lisboa, bem como da sua passagem e do Rei pelo Palácio dos Senhores de Belas [Lavanha;1622,p73].




Ora, se o seu trabalho, no termo e região de Lisboa, que sabemos por várias nomeações para a função de aquilo, que chamamos hoje de diretor ou engenheiro responsável de obra, acontecem entre 1594 para o Forte de São Lourenço do Bugio; em 1597, para o Forte de São Julião da Barra e também de São Filipe, em 1598 e que a par destes tinha, ainda, um acompanhamento técnico das Ferrarias de Barcarena, necessariamente Leonardo Torreano tinha de se "enraizar" ou na Corte em Lisboa, praticamente inexistente, na época, ou em laços de família sustentáveis emocionalmente e economicamente. Assim, Leonardo Torreano casa com uma senhora nobre, D. Maria Manuel, filha de Paulo Afonso, cavaleiro D’El Rei e de D. Joana Cabeia Faria. Família que contava com importantes interesses económicos nos Termos de Lisboa, Sintra e Mafra, como se pode aferir na relação de bens ou rendimentos de uma Capela instituída por esta família, na Paróquia de N. Senhora da Purificação, em Oeiras, consagrada a Nossa Senhora da Piedade. Texto que transcrevemos de seguida, e que para além da informação direta sobre quem administrou e que meios administrou, também é esclarecedor das significativas alterações de posse de terras, em meados de setecentos: «.....capela instituída por D. Mécia Dias, filha de D. Diogo Martins e de D. Helena Dias. De Oeiras, foi Moça de Camara da Rainha D. Leonor esposa de D. Manuel I; casou e não teve filhos. Instituiu Capela de Nossa Senhora da Piedade, na Igreja paroquial de Oeiras, que contava com os rendimentos de três casais situados respetivamente em Cacilhas e Leão [ou Leião, na sua forma mais recente], a que andavam juntos outros bens. O primeiro administrador da Capela foi seu irmão Antão Martins Cabeia; o segundo administrador o filho deste Tomé Antunes Cabeia; ao qual sucedeu Joana Faria, sua filha, como terceira administradora, da dita capela. A joana Faria casou com Paulo Afonso, Cavaleiro d’Rei e desse casamento nasceu D. Maria Manuel, que foi a quarta administradora. Esta senhora D. maria Manuel casou com o famoso Leonardo Torreano, [Engenheiro e arquiteto de Filipe I de Portugal, que sendo de origem italiana aqui se radicou]. O filho destes, Luís Torreano de Faria, foi o quinto administrador. Casou com D. Isabel de Faria e tiveram um filho de seu nome Leonardo Torreano de Faria que foi o sexto administrador; Casou com D. Isabel Francisca da Rosa Sobrinho de quem teve uma filha por seu nome D. Cláudia Maria Veríssima da Rosa. Esta senhora casou com Manuel Serra Bernardes e do casamento nasceu o Leonardo Torreano de Faria, que foi o sétimo administrador e assim estava em 1739.»
 Ora os bens que integravam desde a primeira metade do século XVI a Capela consagrada a Nossa Senhora da Piedade, instituída da Paróquia de Nossa senhora da Purificação de Oeiras, são em parte desanexados por sub-rogados [transferência dos direitos de posse] ao Marquês de Pombal por D. Joana Manuel Torreano de Faria e seus imediatos. Esta senhora era casada com Rafael Carlos Siver da Silva. A transferência de Direitos ocorreu em 16 de Setembro de 1755. Assumem então um papel de rendimento principal, da dita Capela, outros bens que não sabemos se já estavam incluídos desde a sua instituição, ou se terão sido incorporados em 1755, que se encontravam no termo de Sintra, a saber: «o Casal de Apoletim: paga 35 alqueires de trigo; 35 alqueires de Cevada e um carneiro. O Casal de Alvarinhos: 30 alqueires de trigo e 30 de cevada e duas galinhas. o Casal do Arneiro do Arreguenha: 40 alqueires de trigo 40 de cevada. Casal do Godinheiro [Sem localização precisa]: 30 alqueires de trigo e 30 alqueires de cevada e um carneiro. Casal da Reboquia [sem localização precisa]: 30 alqueires de trigo e 30 de cevada. Casal de Armés: 30 alqueires de trigo e 30 de cevada.»
Nos bens desta capela, Nossa Senhora da Piedade, andam ainda arrolados outros bens de natureza financeira  nomeadamente: «.....Damião João: 8 alqueires de trigo salvajo e duas galinhas; Cabecinho: 500 reis; Alcasoval: 12 alqueires de trigo e duas galinha; Um juro na Casa da Moeda da Cidade de Lisboa: 120$000 reis; Outro juro no Concelho Ultramarino: 30$000 reis» (In: Memorial Histórico de Oeiras, ou Coleção  de Memórias de Oeiras, Tomo II - Instituições de Capelas, 28ª, página 117, Edição de CMO de 1992).
Estas foram as últimas contas prestadas pela administradora da Capela, D. Joana Manuel Torreano de Faria, no ano de 1821, depois desta data perde-se o rasto da Capela instituída e dos seus bens, começava-se a viver tempos de mudança e de esvaziamento das Obras Pias.
De Leonardo Torreano sabe-se, também, que este detinha o cargo de Engenheiro Mor do Reino em 1598; em 1605 tinha a seu cargo a construção da fortaleza de São Salvador da Bahia, sem que se tenha a certeza da sua presença física no Brasil, tanto mais que um tal João Torreano, Freire Beneditino, seu filho também foi engenheiro militar.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

FERREIRA DE CASTRO “A Experiência” – um notável romance

MIGUEL REAL

Quarenta anos após a morte do autor, a editora Cavalo de Ferro e o editor Diogo Madre Deus, em colaboração com Ricardo A. Alves, director do Museu Ferreira de Castro, em Sintra, decidiram dar novo alento à obra de Ferreira de Castro publicando de novo a sua obra, há muito desaparecida dos escaparates das livrarias.

Caso o leitor queira revisitar a obra de Ferreira de Castro, pode começar – e começa muito bem – por um dos romances recentemente reeditados, A Experiência, publicado em 1ª edição em 1954. Tal como Os Emigrantes ou A Selva, A Experiência constitui, de facto, uma notável síntese do estilo e da visão do mundo do autor.

Dividido entre duas correntes estéticas complementares, o Naturalismo e o Realismo, ambas datadas da primeira metade do século XX, prolongamento de experiências literárias do fim de século anterior, Ferreira de Castro harmoniza sabiamente estas duas vertentes literárias, conjugando-as, de um modo superior, com os ideais humanistas da igualdade e da justiça sociais do Anarquismo, sua permanente visão política da sociedade e do homem.

Do Naturalismo, Ferreira de Castro recolhe os aspectos patológicos e perversos da sociedade (a prostituição; a miséria social sem redenção; as doenças venéreas; a velhice sem consolo nem remédio; a necessidade do roubo como modo de sobrevivência numa sociedade que é ela toda uma extorsão do trabalho dos pobres e assalariados; os ambientes pútridos das cadeias; os ambientes corruptores da juventude da vida nos asilos de mendicidade…). Do Realismo, recolhe o retrato narrativo da injustiça social, da opressão dos pobres pelos ricos, do fatalismo de uma vida nascida em miséria contra os privilégios dos embalados em berços de ouro e a necessidade de revolta e de luta política contra as instituições repressivas do Estado.

Assim se compõem as vidas de duas crianças aziagas caídas na infância num asilo: Januário, menino que, em adulto, por amor se tornará ladrão e criminoso, e Clarinda, menina desonrada e engravidada pelo filho da Dona Ludovina, dona da casa para onde foi trabalhar como criada após o encerramento do asilo.

Neste, dirigido por legado testamentário por um professor de Filosofia, tentara-se uma “experiência” educativa fundada na liberdade e no senso de justiça das crianças, educando-as segundo os ditames mais nobres da consciência moral. Porém, por contrário aos costumes e aos interesses das famílias poderosas, quer dizer, ricas, que têm no conjunto de crianças órfãs uma reserva de mão-de-obra para o trabalho nas suas casas e quintas, o asilo foi entregue a freiras e posteriormente fechado e restaurado pela Câmara como prisão. Januário, que em pequeno habitara o asilo, habita agora a novel prisão.

O estilo de Ferreira de Castro em A Experiência cruza aqueles dois tempos diferentes, intercalando-os por via da memória das personagens que, partindo de uma situação futura, uma nova e consumada evolução na sua vida, relatam os acontecimentos do passado.

Em A Experiência, existe uma concepção fatalista da História, no sentido de que estruturas sociais injustas criam e reproduzem vidas individuais infelizes, de que não só ninguém está a salvo como, por mais boa vontade que haja ou se tenha, não se consegue fugir. Esta concepção é sobretudo defendida no tribunal pelo advogado Macieira, uma personagem que, convivendo à mesa com os ricos, é, no entanto, envolvido tanto uma piedade cristã quanto por um desejo de igualdade entre todos os cidadãos.

Nasce assim a necessidade de uma revolução social, que “há-de vir um dia em que haverá pão para todos” (última frase do romance).

No último capítulo, o amor sobressai e vence a injustiça social e Clarinda confessa que esperará pela saída da prisão de Januário para recomeçarem a vida.

Romance tecido de miséria, perversão individual, exploração social e económica e profunda opressão sobre quem nasce pobre.



A Experiência,

Cavalo de Ferro, 224 pp. 13,50 euros.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Cores

BÁRBARA JORDÃO RODHNER
Ocorre-me a certeza profunda que eu lavo a cabelo, esfrego a pele com crina de cavalo, disfarçada, comprada no supermercado, sou torta mas uso um colete para me endireitar, aparelho dos dentes para domesticar o maroto dente que me nasceu desde que me senti eu. Sou. Estúpida ou não intelectualmente e emocionalmente, como uma bruxa que largou a vassoura e se agarrou, preguiçosamente, ao aspirador electrónico. Quando não me aceito; abdico do todo do mim.



Há mulheres assim, disformemente perfeitas, um horror para ter em casa porque não cabem em jarras nem sabem cozinhar.



Cabras.
Putas que difamam doces vaginas cheias de Mel.



Ela sou eu ou Eu sou ela?
Deusas negras. Mulheres das sombras .




 

domingo, 21 de setembro de 2014

8 de Setembro, Dia Internacional da Alfabetização

JOÃO  CACHADO

Em 1965, ao adoptar a data de 8 de Setembro como Dia Internacional da Alfabetização, a UNESCO logo estabeleceu que, para a eficaz e sistemática divulgação das campanhas afins de cada ano de trabalho neste domínio, todas as iniciativas se subordinariam a um tema específico e dinamizador.
Foi nesse contexto que, apenas referindo os três anos mais recentes, em 2012, a ideia forte foi a da Alfabetização e Paz enquanto que, no ano passado, a linha mestra de todas as grelhas de actuação passou por perspectivar os desafios de uma adequada Alfabetização para o Século Vinte e Um. Pois bem, em 2014, a grande preocupação é Alfabetização e o Desenvolvimento Sustentável.
De algum modo, através da simples enunciação deste tipo de slôganes, a UNESCO chama a atenção para um factor determinante. Ou seja, longe de se reduzir à mera dicotomia ensino/aprendizagem de um código alfanumérico, a alfabetização é indissociável dos mais ambiciosos objectivos sociais, económicos e culturais que contribuem para a hipótese da felicidade do Homem.
O tema condutor deste ano não podia estar mais de acordo com o global entendimento da alfabetização, não como oferta ou imposição do sistema mas, isso sim, tal como Paulo Freire propunha, aquisição-chave para o indivíduo se tornar cidadão em toda a acepção da palavra, com plena capacidade de intervenção cívica, sempre na perspectiva de que ela não transforma o mundo mas muda as pessoas e estas é que transformam o mundo.
Ora bem, tal conceito radica na constante necessidade de actualização de um programa cujas características estruturais exigem logística adequada em todas as latitudes, considerando que, tanto as grandes manchas continentais como as bolsas mais restritas de analfabetismo, sempre correspondem a evidências de subdesenvolvimento, ainda que com os matizes naturais e correspondentes às respectivas coordenadas geográficas e socioculturais.
Preocupantes números
Na ponta mais meridional da Europa, quando nos esforçamos por melhor entender o caso português, logo deparamos com um quadro cujos contornos, além de negativos, se evidenciam com assinalável persistência. De facto, que evolução poderá ter existido se, em 1900, cerca de setenta por cento da população era analfabeta e, três quartos de século depois, tal percentagem era próxima dos trinta por cento?
Mais ou menos trinta por cento, em 1974? Será necessário recordar que trinta por cento era a taxa de analfabetismo que países como a Irlanda ou a Áustria apresentavam na última década do século dezanove, praticamente cem anos antes?
No que respeita às tentativas de remediação da situação depois do 25 de Abril, cumpre lembrar as generosas e inúmeras iniciativas de alfabetização promovidas e protagonizadas, entre outros, por intelectuais, professores, estudantes e militares dos três ramos das forças armadas.
Foi necessário, contudo, aguardar cinco anos para que, por unanimidade, o Parlamento tivesse aprovado a Lei 3/79 de 10 de Janeiro e, com ela, apresentasse o Plano Nacional de Alfabetização e Educação de Base dos Adultos [PNAEBA] cujo Relatório de Síntese, datado de Junho do mesmo ano, sistematizou e, grosso modo, apontou o fim da década seguinte para irradicação do analfabetismo.
Foram investidos recursos muito significativos e montada uma estrutura nacional, dotada dos indispensáveis meios materiais e recursos humanos. Muito, muito se fez mas também muito ficou por fazer, razão pela qual Portugal ainda é um país em que a Educação de Base de Adultos se impõe de modo determinante.
Com uma preocupante incidência de mais de vinte por cento dos cidadãos vivendo no limiar da pobreza e, pasme-se, com a mais elevada taxa de analfabetismo de todos os países da Europa a 27, será que surpreendem as marcas de subdesenvolvimento?
Aliás, para bem de todos, a verdade dos baixos índices socioculturais portugueses deveria ser devidamente partilhada, tanto a nível nacional como na UE. Ora bem, não é, está longe de ser e isso só prejudica o país que, nem se mobiliza internamente nem é objecto da solidariedade europeia na dimensão de que carece.
Finalmente, outra realidade não menos preocupante se vai perfilando. Refiro-me à literacia cuja definição remete para as capacidades de processamento da informação escrita na vida quotidiana. Trata-se das capacidades de leitura, escrita e cálculo com base em textos, documentos, gráficos, de uso corrente na vida social, profissional e pessoal.
Pois bem, importa assumir que 47,3% da população portuguesa se distribui pelos níveis 0 (zero) e 1 (um), ou seja, correspondentes à mais radical indigência da literacia. São números tremendos, quase metade da população!... Na realidade, o analfabetismo surge com outros e radicalmente novos desafios aos quais preciso é responder, quanto antes, integradamente, com todos os recursos disponíveis.
Naturalmente, em Sintra, esta estatística também dá que pensar.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

A Árvore-I


MIGUEL BARRILARO RUAS
“ Venham as desilusões, e façam-me sentir vivo; venham as tristezas, as lágrimas, e façam-me sentir humano. Já outra coisa, a apatia, um vazio e uma indiferença que não despertam qualquer tipo de sentimento ou reacção [rabiscos) … é quase como se não existíssemos.”

Eram estas as palavras que Joseph escrevia, encostado ao tronco de uma velha figueira solitária, na ânsia de aliviar a torpeza em que caíra a sua alma.

Depois de duas horas ali sentado, Joseph decide finalmente levantar-se, abandonando a sua mais íntima e fiel companheira de introspeções e devaneios (não ouvia, não falava nem se movia; continha antes uma quietude tranquila, simples e quase divina, que inspirava todos os que por lá passavam).

Seguiu então para sua casa. Quando chegou às primeiras habitações da aldeia, cumprimentou os escassos transeuntes que simplesmente descansavam ou liam nos alpendres. Lá ia subindo, calmamente, a rua íngreme, quando ouviu um emaranhado de vozes agitadas vindas do bar. Pareceram a Joseph vozes animadas. Não resistiu a dar uma espreitadela.

Ao entrar, reparou que estava tudo muito mais animado e bebido do que de costume para um dia da semana; mas, como era teimosamente costume em Joseph nos últimos tempos, pouco se deixou impressionar.

Para contrariar essa sua paralisia, decidiu pedir uma bebida forte, que o desentorpecesse de um trago. E assim o fez: sentou-se o mais comodamente que pôde e pediu, quase ofegante, com a voz trémula, um whisky duplo sem gelo. Deu um gole valente e puxou de um leuca cigarro

O café possuía todo um ambiente que o distinguia dos demais: era impressionantemente amplo, com um pé direito de cerca de quatro metros de altura, sustentado por enormes vigas de madeira, compostas perpendicularmente, e por robustas colunas cravadas vigorosamente no chão. Tinha cerca de nove mesas, também elas de madeira, quase distribuídas ao acaso, que pareciam ter brotado naturalmente do solo a partir de sólidas raízes de árvore.

A iluminação era bastante difusa, opaca, dando ao café um certo ar sombrio, que convidava a diálogos sérios e a reflexões misteriosas. Mas o que seria totalmente impossível de não reparar, até mesmo ao rei dos sóbrios, era no maravilhoso balcão de mármore, liso como são as novas capas dos livros, mas cheio de salpicos brancos que faziam recordar constelações. Muitos naquela aldeia sentiam-se misteriosamente atraídos por aquele balcão, e era costume contar-se que houvera quem estivesse prestes a transformar-se em um.

Mas o mais digno de ser referido, e que naturalmente provocará a admiração do nosso leitor, é o facto de todos os inúmeros frequentadores do bar, e, aliás, da esmagadora maioria dos habitantes daquela aldeia, se ocuparem da profissão da escrita. Todos eram escritores! É a verdade. De vários estilos literários distintos, claro está, mas todos escreviam livros. E era dessa forma que ganhavam a vida.

Joseph reparou que os autores, nesse dia, não obedeciam à tendência natural de se ordenarem nas mesas de acordo com o estilo literário a que pertenciam: os filósofos e ensaístas, normalmente dispostos no canto mais escuro e recôndito do café, estavam dispersos por todo o espaço e em incomum alvoroço; os poetas, conhecidos pela vida boémia e pela irreverência com que enfrentavam as bebidas alcoólicas, encontravam-se mais sóbrios do que o natural, mas mais despertos e vivaços do que nunca, esgueirando-se a monte sobre uma única mesa. Os escritores de policiais, por norma um pouco solitários e introvertidos, falavam alegremente entre os seus companheiros de letras… Todos se encontravam mais animados que o habitual, inclusive os romancistas, cronistas e talentosos escritores de ficção científica; pairava naquele lugar um frenesim invulgar.

O alvo de tanta curiosidade, percebeu Joseph, ainda antes de ter acabado de virar o whisky, era o velho gorducho Norbert, que acabara de escrever aquele que dizia ser o seu último livro. Norbert era um escritor que já contava com mais de trinta livros no seu currículo – a maioria dedicados a questões controversas de psicologia familiar.

Todos tentavam ver o título do livro de Norbert, que fazia teimosamente questão de guardar segredo. Já não o viam fora de casa fazia um ano e meio, tamanha deveria ser a sua dedicação ao dito cujo.

Mas eis que, com enorme espanto para todos, viram o autor levantar-se e anunciar que, antes de apresentar ao público a sua obra, iria realizar uma grande cerimónia, em honra ao fim da sua extensa obra literária; enfadonha, é certo, mas laborada com enorme paixão. Iria ser certamente um festim memorável.

- Faço questão que todos compareçam –, afirmou Norbert em êxtase – Incluindo tu Joseph! Pode ser que este meu livro seja um bom antídoto para essa tua depressão!
CONTINUA

Licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa. A concluir mestrado em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Procuro só a beleza etérea em vão


JOÃO AFONSO AGUIAR










Procuro só a beleza etérea em vão:

Nas cinzas da frustrada conquista,

Impulsionada pelo desejo narcisista,

Ficaram os estigmas da destruição.


Foi-se a esperança de felicidade

Num tempo sem heróis nem bravura,

De frívolos indolentes sem lisura,

Que em demónios fitam a virtude.


Sobeja pois a amarga solidão:

Da gruta e da bucólica poesia,

Até à partida eterna da visão


De que a vida sem sabedoria,

E a beleza que alumia o coração,

Não é mais que brutalidade vazia.


João P. Afonso Aguiar

Sintra, 14 de Setembro de 2014