quinta-feira, 18 de setembro de 2014

A Árvore-I


MIGUEL BARRILARO RUAS
“ Venham as desilusões, e façam-me sentir vivo; venham as tristezas, as lágrimas, e façam-me sentir humano. Já outra coisa, a apatia, um vazio e uma indiferença que não despertam qualquer tipo de sentimento ou reacção [rabiscos) … é quase como se não existíssemos.”

Eram estas as palavras que Joseph escrevia, encostado ao tronco de uma velha figueira solitária, na ânsia de aliviar a torpeza em que caíra a sua alma.

Depois de duas horas ali sentado, Joseph decide finalmente levantar-se, abandonando a sua mais íntima e fiel companheira de introspeções e devaneios (não ouvia, não falava nem se movia; continha antes uma quietude tranquila, simples e quase divina, que inspirava todos os que por lá passavam).

Seguiu então para sua casa. Quando chegou às primeiras habitações da aldeia, cumprimentou os escassos transeuntes que simplesmente descansavam ou liam nos alpendres. Lá ia subindo, calmamente, a rua íngreme, quando ouviu um emaranhado de vozes agitadas vindas do bar. Pareceram a Joseph vozes animadas. Não resistiu a dar uma espreitadela.

Ao entrar, reparou que estava tudo muito mais animado e bebido do que de costume para um dia da semana; mas, como era teimosamente costume em Joseph nos últimos tempos, pouco se deixou impressionar.

Para contrariar essa sua paralisia, decidiu pedir uma bebida forte, que o desentorpecesse de um trago. E assim o fez: sentou-se o mais comodamente que pôde e pediu, quase ofegante, com a voz trémula, um whisky duplo sem gelo. Deu um gole valente e puxou de um leuca cigarro

O café possuía todo um ambiente que o distinguia dos demais: era impressionantemente amplo, com um pé direito de cerca de quatro metros de altura, sustentado por enormes vigas de madeira, compostas perpendicularmente, e por robustas colunas cravadas vigorosamente no chão. Tinha cerca de nove mesas, também elas de madeira, quase distribuídas ao acaso, que pareciam ter brotado naturalmente do solo a partir de sólidas raízes de árvore.

A iluminação era bastante difusa, opaca, dando ao café um certo ar sombrio, que convidava a diálogos sérios e a reflexões misteriosas. Mas o que seria totalmente impossível de não reparar, até mesmo ao rei dos sóbrios, era no maravilhoso balcão de mármore, liso como são as novas capas dos livros, mas cheio de salpicos brancos que faziam recordar constelações. Muitos naquela aldeia sentiam-se misteriosamente atraídos por aquele balcão, e era costume contar-se que houvera quem estivesse prestes a transformar-se em um.

Mas o mais digno de ser referido, e que naturalmente provocará a admiração do nosso leitor, é o facto de todos os inúmeros frequentadores do bar, e, aliás, da esmagadora maioria dos habitantes daquela aldeia, se ocuparem da profissão da escrita. Todos eram escritores! É a verdade. De vários estilos literários distintos, claro está, mas todos escreviam livros. E era dessa forma que ganhavam a vida.

Joseph reparou que os autores, nesse dia, não obedeciam à tendência natural de se ordenarem nas mesas de acordo com o estilo literário a que pertenciam: os filósofos e ensaístas, normalmente dispostos no canto mais escuro e recôndito do café, estavam dispersos por todo o espaço e em incomum alvoroço; os poetas, conhecidos pela vida boémia e pela irreverência com que enfrentavam as bebidas alcoólicas, encontravam-se mais sóbrios do que o natural, mas mais despertos e vivaços do que nunca, esgueirando-se a monte sobre uma única mesa. Os escritores de policiais, por norma um pouco solitários e introvertidos, falavam alegremente entre os seus companheiros de letras… Todos se encontravam mais animados que o habitual, inclusive os romancistas, cronistas e talentosos escritores de ficção científica; pairava naquele lugar um frenesim invulgar.

O alvo de tanta curiosidade, percebeu Joseph, ainda antes de ter acabado de virar o whisky, era o velho gorducho Norbert, que acabara de escrever aquele que dizia ser o seu último livro. Norbert era um escritor que já contava com mais de trinta livros no seu currículo – a maioria dedicados a questões controversas de psicologia familiar.

Todos tentavam ver o título do livro de Norbert, que fazia teimosamente questão de guardar segredo. Já não o viam fora de casa fazia um ano e meio, tamanha deveria ser a sua dedicação ao dito cujo.

Mas eis que, com enorme espanto para todos, viram o autor levantar-se e anunciar que, antes de apresentar ao público a sua obra, iria realizar uma grande cerimónia, em honra ao fim da sua extensa obra literária; enfadonha, é certo, mas laborada com enorme paixão. Iria ser certamente um festim memorável.

- Faço questão que todos compareçam –, afirmou Norbert em êxtase – Incluindo tu Joseph! Pode ser que este meu livro seja um bom antídoto para essa tua depressão!
CONTINUA

Licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa. A concluir mestrado em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra.

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