sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Francisco Costa, a reescrita da vida

CARLOS MANIQUE

Num texto publicado a propósito do centenário do nascimento de Francisco Costa (1900-1987), muito justamente celebrado no ano de 2000, analisei alguns aspetos associados à casa onde o citado escritor viveu cerca de sessenta anos (situada em Sintra, na rua Sacadura Cabral). Procurei, no momento, valorizar a cumplicidade existente entre o autor do projeto de arquitetura, Raul Lino, e os desígnios do futuro utilizador. Com efeito, a obra literária do escritor sintrense deixa transparecer quão significativa foi a casa que habitou – entendamo-la enquanto espaço de vivência cultural e familiar – para o seu labor criativo. E não é apenas pelo facto de em alguns romances de Francisco Costa serem descritas paisagens observadas do alpendre de sua casa (cf., por exemplo, A Graça e a Serpente, edição de 1969, p. 229) – do qual se tem, aliás, ampla e privilegiada vista para os vetustos castelo mourisco e paço real –, do mesmo modo, trechos do interior da habitação, mas sobretudo pelo lar surgir como um espaço de contrastes, se quisermos, de dicotomias: luz/sombra; alegria/tristeza…

Em boa medida, esse pensamento encontra-se plasmado num soneto digno de referência, na sua derradeira versão (já que resultou de um processo de reescrita ao longo da vida) intitulado “A Casa” e publicado em Última Colheita (1987). Note-se que a ideia do soneto remonta ao período de construção da casa do poeta (1926 a 1929). De resto, a primeira versão conhecida, intitulada “Domus mea”, data de maio de 1930. Também desse ano (tudo leva a crer) existe uma outra versão, sem título, muito similar (exceção feita à segunda quadra) e escrita numa folha avulsa. Tratar-se-á do primeiro esboço?

O dito soneto só viu a luz do dia em 1938, nas páginas do Jornal de Sintra e sob o título “Domus nostra”. Verificam-se, aliás, algumas alterações relativamente à versão escrita em 1930, sendo interessante a própria mudança de “mea” para “nostra”; traduz, na minha perspetiva, maior espírito de comunhão entre a família que então crescia, se enraizava e partilhava o espaço do lar.

Passaria quase meio século até que o poeta voltasse a deter-se no soneto, ou seja, já na fase final da sua vida. E é na última versão, passados então muitos e férteis momentos de alegria, mas também de agrura e tristeza (como foram os dos falecimentos da filha mais velha e da esposa), que a escrita explora com mais fluidez e sentimento a dor física dos obreiros (metamorfoseada na dor de quem é acolhido pelas paredes da casa). O próprio nome com que Francisco Costa rebatizou o soneto, prescindindo de um pronome possessivo, deixa antever alguém que se encontrava “maduro para a eternidade […] para repousar sem mais turbações de existência”, fazendo minha a feliz expressão de Pinharanda Gomes.  

Procuremos, então, fruir as três versões do soneto…

Domus mea

Quando esta casa, que hoje abriga a gente

das chuvas e dos ventos, mal se via

emergir dos caboucos, dia a dia,

pedra a pedra, penosa e lentamente;


em certo dia abafadiço, ardente,

o suor dos obreiros escorria

juntando-se à argamassa inerte e fria

numa pasta de dor, salgada e quente.


Se, pois, ante os espinhos e os escolhos

da vida, nos vier o pranto aos olhos,

não ergamos queixumes para Deus.


Nossas lágrimas são a indigna paga

do suor que outros deram, baga a baga,

para que estes muros fossem teus e meus.

(Maio de 1930; espólio Francisco Costa)

Domus nostra

Quando esta casa, que hoje abriga a gente

das chuvas e dos ventos, mal se erguia

acima do cabouco, e a trave esguia

viçava ainda no pinhal ridente,


ah! quantas vezes, sob o sol candente,

o suor, que em fartas gotas escorria

da fronte dos obreiros, convertia

a argamassa banal num fluido ardente.


Hoje, ao abrigo enfim dos temporais,

íntimos ventos nos povoam de ais,

molham-se os meus, choram teus olhos puros.


e o nosso pranto, lentamente, apaga

a dor que outros suaram, baga a baga,

e que arde incorporada nestes muros.

(12 de junho de 1938, publicado no Jornal de Sintra a 19 do mesmo mês e ano)

 A Casa

Quando esta casa, feita mesmo em frente

da serra verde, ainda mal se erguia,

e as traves da futura moradia

eram belos pinheiros, simplesmente,


houve uma tarde, sob um sol ardente,

em que o suor em bagas escorria

da testa dos pedreiros e fazia

da cal e areia uma argamassa quente.


Hoje, há paredes contra os vendavais,

mas é cá dentro que soltamos ais

nos dias mais aflitos ou mais duros.


Enquanto gemem temporais lá fora,

pagamos nós em lágrimas, agora,

a dor incorporada nestes muros.

(Última Colheita, 1987, p. 13)

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