quarta-feira, 1 de abril de 2015

Inês Pedrosa- A paixão conduz a escrita

MIGUEL REAL


Belíssimo novo romance de Inês Pedrosa, Desamparo, tão festivo quanto fúnebre, tão cosmopolita quanto nacional, tão céptico quanto esperançoso, percorre toda a gama de sentimentos humanos, da alegria esfuziante ao fracasso mais atroz, do amor atormentado e obstinado à humilhação nos negócios.

Em Desamparo, a história e as personagens entrecruzam-se de um modo inextrincável, desconhecendo-se qual a mais importante, se a história, uma síntese dos tempos recentes de Portugal, se as personagens, das mais sólidas e vibrantes que a autora criou. A história decorre na aldeia de Arrifes, Vila de Lagar (lugar inventado, claro) e possui personagens fortes, (i) como as três vizinhas Jacinta, Alice e Rosário, as duas primeiras falecidas, Jacinta adoecida e levada para o hospital no princípio do romance, desencadeando a acção deste, Alice no final, “desamparada, isolada num baldio; (ii) como Raul e os seus dois irmãos, Rafael e Rita; (iii) como Vanessa assassinada numa danceteria; (iv) como Clarisse, antiga jornalista desempregada e animadora cultural em Arrifes, que, pelo amor, redime a vida de Raul; (v) como o literato inconstante Pedro Gama Lousada, belíssimo retrato de escritor e activista cultural decadentista encontrado na vida boémia de Lisboa.

São personagens fortes, isto é, cada uma dotada de uma personalidade vincada, totalmente distinta das restantes, e com acção singular no seio da história narrada. As restantes personagens (Joaquim, o dono da funerária Zorro, idosos do Centro de Dia, Gaspar e Cátia, Carla Fontinha, habitantes de Arrifes, funcionários camarários, Ema de Castro, o Grande Escritor ressuscitado e o Grande Arquitecto premiado…) compõem, digamos assim, o pano de fundo ou o horizonte social donde se destacam as personagens marcantes, sobretudo Raul.

Trata-se, sem dúvida, da história simultaneamente feliz e infeliz de Jacinta de Sousa e da vida derrotada mas redentora de seu filho Raul. E, com Jacinta e Raul, é, ainda que raramente se descrevam episódios do poder político, da história de Portugal que se trata, sobretudo dos anos mais recentes. Da tenacidade de Raul, que, embora nascido no Brasil, vindo para Portugal para acompanhar a mãe, recusa emigrar; do amor de Clarisse, que aceita emigrar um ano para Berkeley para pagar a parte do Casal da Bela Vista que coubera em herança a Raul e aos seus dois irmãos; da vida de Jacinta levada menina para o Brasil pelo pai Artur, tipógrafo, casada com o galante Ramiro, que a trocou por mulher mais nova, e regressada a Portugal para fazer companhia à mãe Margarida e viver até à morte na casa de Arrifes.

Desde o seu primeiro romance, A Instrução dos Amantes (1992), a paixão comanda a escrita de Inês Pedrosa: paixão gizada em torno de um realismo social participante, prestando testemunho do seu tempo; paixão alimentada pela observação atenta e racional da realidade, na qual, porém, a emoção, o sentimento, a escrita na primeira pessoa do singular comandam a estrutura aparentemente labiríntica das suas narrativas; paixão igualmente na selecção das histórias de vida narradas e no levantamento das personagens principais.

A metodologia de escrita, ainda que emotivamente espontânea, parece residir num conjunto concêntrico de abordagens, isto é, parte-se de um facto nuclear (morte de Jacinta de Sousa; fracasso de vida de Raul, seu filho), ampliado posterior e sucessivamente ao nível local e ao nível da vida do país (neste caso Portugal e Brasil, já que Jacinta viveu e casou no Brasil e Raul nasceu neste país). Mais do que tecido labirinticamente, Desamparo parece assim viver de sucessivos círculos concêntricos, entre os quais, até às derradeiras páginas, o capítulo seguinte concentra e supera os anteriores, arrastando e enlevando a mente do leitor.

Desamparo, título sintético mas muito sugestivo, reflecte o estado actual de Portugal, um país simultaneamente amado pela sensibilidade das personagens, sobretudo Jacinta, Raul e Clarisse, e odiado pela racionalidade analítica dos diversos narradores. Um país “desamparado” por uma elite político-administrativa tecnocrática, no qual mais contam as boas contas orçamentais do que a qualidade de vida dos seus habitantes.

Com efeito, os últimos capítulos de Desamparo fazem lembrar o final do último romance publicado em vida de Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires, no qual, através da personagem principal, Gonçalo Mendes Ramires, regressado de Moçambique, se tematiza a essência da identidade histórica e antropológica de Portugal, concluindo-se que Portugal é um país que simultânea e paradoxalmente “desampara” e redime os seus habitantes, tanto provocando neles um estado de abandono e abatimento quanto, em outros momentos, os estimula à e lhes concede a salvação.

Um dos melhores romances da já vasta obra de Inês Pedrosa.

Desamparo,

D. Quixote, 315 pp,, 15,90 euros

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