segunda-feira, 11 de maio de 2015

As saudades


EURICO LEOTE
O vento irritado soprava intenso e vigoroso. O homem teimoso insistia em cobrir com um oleado a lenha disposta em camadas alinhadas e tranquilas.

As árvores com os seus ramos vergados e torcidos gemiam, enquanto buscavam um abrigo impossível face à desolação que as cercava.

Por detrás das vidraças uma criança brincava olhando de tempos a tempos para o exterior, sobressaltada pelo troar do vento.

O céu cobriu-se de negro o que levou a criança a espreitar mais de perto, agora de nariz colado na vidraça. O bater ruidoso e rápido das lágrimas caídas do céu, levou a criança a recuar num misto de defesa e de susto, pelo inesperado da cena. Uma luz forte que por breves momentos surgiu, anunciou um forte ribombar que estremeceu toda a casa, pelo que o salto dado pela criança, seguido de uma rápida corrida para junto de sua avó sentada no seu canapé, apostada em dar vida a um par de meias, fundiram-se numa só acção.

Uma vez aninhada junto da avó e perante a tranquilidade desta, a criança serenou regressando às suas brincadeiras. O dia deu rapidamente lugar à noite e as luzes da casa surgiram de pronto acesas pela atenta serviçal que era dona de toda aquela casa, uma vez que era ela que punha e dispunha, procurando sempre ir ao encontro das necessidades de avó e neto, aos quais era dedicada.

A entrada do Inverno fazia-se assim anunciar, contrariando algumas previsões, e augurando a saída do período de seca que até então a população da aldeia havia sentido, e pela qual passara nos últimos meses, com fortes problemas e dificuldades para plantas e animais. A população da aldeia apesar de ver secar a água nas suas torneiras, conseguiu ultrapassar a situação e a carência de água recorrendo a cisternas e poços comunitários providenciais. A aldeia embora pequena era auto suficiente pois possuía igualmente um forno comunitário de onde se elevava um cheiro reconfortante e doce, especialmente quando se faziam os bolinhos típicos de mel, ou quando se assavam batatas doces.

Um moinho agora com as suas pás travadas e as respectivas mós paradas, não fora o vento mandar tudo pelos ares e estragar o engenho, era responsável pela moagem dos cereais usados na confecção. Do milho ao trigo usado pelo homem a outras farinhas utilizadas na alimentação do gado, tudo era triturado por aquelas mós já gastas pelo tempo, onde o Sr. José com o seu saber gosto e esforço se empenhava em manter a funcionar, consciente da importância do mesmo para toda a aldeia.

A avó com os seus óculos na ponta do nariz, acabara de compor a meia e jogava agora a mão a uma peça de roupa do menino, de onde se soltara um botão cansado de estar sempre no mesmo lugar, e que de vez em quando espreitava da sua casa.

A avó era a tranquilidade em pessoa, trabalhando com os seus gestos lentos mas eficientes e perfeitos, pois a pilha de roupa já composta e reparada ía ganhando altura no tabuleiro. De ali seguiria para as gavetas da cómoda e do roupeiro, levadas e arrumadas pela Carlota. Era bonita a avó apesar da idade que aparentava e das rugas que sulcavam a sua cara. Os óculos de aro de tartaruga balançando na ponta do seu nariz conferiam-lhe um ar de pessoa sapiente, meiga e amiga. Volvidos vários anos e após ter criado o filho, cabia-lhe agora e ainda tomar conta do neto. Não que isso lhe não desse prazer. Sempre se sentia mais acompanhada, e as correrias e diabruras da criança ajudavam a preencher os espaços da casa e a quebrar os silêncios que em nada ajudavam a passar o tempo, em quanto aguardava que os seus filhos como os tratava, regressassem de outras paragens para as quais foram compulsivamente atirados face à impossibilidade de encontrar trabalho dentro de portas. Este era um panorama generalizado por todo o país, com os jovens a sair em busca de trabalho e buscando a independência, cansados de viverem debaixo do mesmo tecto com os pais e os irmãos. Há uma altura para tudo, e por muito que custem os cortes e separações, é preciso partir em busca de realização pessoal. As saudades serão mitigadas dentro do possível e sempre que surjam as oportunidades.

Agora mais tranquila a criança e passada que fora a borrasca, regressou à janela para ver recolher a casa e de enxada às costas o homem teimoso que conseguira vencer por agora o vento, e cobrir a sua lenha para a manter seca para os tempos mais frios que se aproximavam. Lançou um adeus à criança que por detrás da janela e a coberto da intempérie assistia ao que se passava no exterior. A criança timidamente correspondeu reconhecendo de pronto e a coberto do capote o Sr. António que por vezes aparecia lá por casa para dar um jeito no jardim. Sorriu, e agora sim manifestou toda a sua simpatia com um aceno mais violento e contínuo. O Sr. António sorriu igualmente e afastou-se no seu passo permitido pelo ainda forte vento que se instalara, e que de acordo com as previsões viera para ficar toda a santa semana.

O acalmar da chuva trouxe à rua o cachorro do Sr. Filipe, animal meigo que se mantinha normalmente por aqueles lados, recebendo as carícias dos vários amigos que por ele passavam. Era vê-lo deitado dormitando ou de orelhas à escuta, atento aos ruídos e à vizinhança.

De dentro a voz soou trazendo o menino à realidade. Chamavam-no para ir tomar o seu lanche. Menino em idade de crescer precisa de estar bem alimentado dizia a avó. Até porque tinha contas a dar aos pais, quando estes aparecessem, ainda que por um curto período de tempo. Não estavam ainda criadas as condições que permitissem o retorno, e estava fora de causa fazer deslocar o menino para um outro meio mais hostil, onde a língua seria indubitavelmente uma forte barreira ao crescimento e desenvolvimento. Pelo menos assim o pensavam os pais, que estavam de comum acordo nesta matéria.

Por vezes o silêncio da casa era perturbado por suspiros mais profundos da pobre senhora, que sentia o peso da responsabilidade. Acontece que os anos não perdoam, e uma pobre velha tem dificuldade em criar uma criança, a qual necessita do convívio de outras idades, e de ter por perto os pais, para ser criada de acordo com os padrões e exigências familiares.

A aldeia era o espelho do país no tocante à constituição da população. Os muito novos e os muito velhos como ela, o Sr. António, o Sr. Filipe e a tia Maria que sempre viveram agarrados à terra e aos animais. Os braços produtores e as cabeças sãs e instruídas haviam emigrado em busca de trabalho que mitigasse a fome e permitisse uma satisfação pessoal, uma lufada de ar e uma esperança no futuro, em oposição a um país moribundo, cheio de velhos do Restelo, sem uma visão globalista, antes pelo contrário fechada e monolítica. Haviam de regressar um dia. Essa era a esperança e o sonho que os mantinha longe e ao mesmo tempo tão perto.

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