sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Relatos de um alagamarense em Cubucaré- I

GONÇALO SALVATERRA
 


Podia começar este texto com um célebre - eu sou um cristão, e um cristão não teme! Mas eu não sou cristão.
Ao escrever tal blasfémia, fui rogado por uma praga, um morcego invadiu a minha sala - História verídica, que acabou de acontecer - voando desenfreadamente em busca do caminho que o levará ao habitual pousio de residência, o meu telhado.

Esteiras artesanais de palha nos separam, a mim e a ele, a ele e a mim. Na verdade penso que são eles e não ele, tal é a barulheira que fazem de noite, já para não falar dos ratos.

A minha relação com estes parentes afastados é complicada. e até platónica, em comum nada temos se não sermos bons apreciadores de leite, eles são activos de noite, eu de dia, eles ignoram as minhas palmas e os meus assobios para os afugentar, eu não ignoro o seu bater de asas e os seus guinchos para me despertar, enfim somos o sol e a lua, mas temos os nossos eclipses. Tal como já contei anteriormente, o encontro imediato desta noite, e ainda não tenho a certeza se já se foi embora. Depois de um longo duelo, quando finalmente pensara que desaparecera, lá estava o vampiro, descaradamente a relaxar, fazendo do meu mosquiteiro cama de rede. Se ao menos este morcego estivesse para mim como o corvo está para o João Rodil, eu estaria melhor, podia dizer para ele se calar, ou para ele fazer de pousio a casa do lado. Melhor ainda, podia ser ensinar-lhe a beber leite com café, talvez lhe trocasse as voltas ao sono, ficava acordado de dia e dormia à noite. Isso é que era.

Hoje é quinta feira, e Alá abençoou-me, pois a quarta e a quinta feira são dias de relativo silêncio -no mato o silêncio só pertence aos surdos - uma vez que não há marabu (aulas do alcorão). Os restantes dias sou torturado com miúdos a esforçar as cordas vocais com - Aláukbarr. Tão mais tortuoso o é porque me faz lembrar - HÁ LÁ AQUELE BAR, ensinamento número um do meu amigo Fernando Gomes, devo acrescentar Morais pelo meio, pois caso contrário lembra-me um jogador de futebol. Ouvir repetidamente HÁ LÁ AQUELE BAR e não ter nem bar, nem cerveja, pode abalar a cabeça de qualquer jovem que sinta na pele 35 °C.
Assim se vive há um mês no mato da Guiné, que qualquer dia, com a velocidade a que se corta arvores para nós brancos comermos caju, o termo mato dará lugar a cajueiro. Ficando a frase - Assim se vive há um mês no cajueiro da Guiné.
Os "amiguinhos"....

1 comentário:

  1. Excelente, Gonçalo, um grande abraço do meio do granizo...de Sintra!

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