quarta-feira, 2 de março de 2016

A outra Sintra (excerto)

PEDRO PEREIRA 
 Pedro Pereira tem 25 anos e ambiciona ser um escritor e jornalista depois de se licenciar em Comunicação Social.








IV. “  No sangue de Sintra corre o vinho, a serra e o mar. No Monte da Lua este sentimento não é só uma ideia, mas a lei. “

-       Oliva Correia

            As chamas erguiam-se alto no céu, beijando a Lua que observava tudo, olho pálido no céu azul, iluminando a cena com uma beleza macabra.

            Em silêncio, já há muito desprovidos de vida, ardiam os corpos daqueles que me tinham vigiado no sono.

            Ardiam amarrados a estacas de madeira, erguidos a um metro do chão, tinham sido atados como porcos num banquete, pouco mais do que animais para o matadouro. Sentia o cheiro da sua carne chamuscada, da pele carbonizada e do sangue a ferver, escorrendo do corpo.

            Na praça principal da vila não havia vivalma, apenas sombras, caminhando discretamente sob a luz do Luar. Eram não mais do que vultos, escorraçando por entre as ruelas e escadarias da vila.

            Percebi de imediato que não estava onde devia estar. Fosse onde fosse, esta não era Sintra, vila romântica, paraíso dos escritores e ode da vida, mas sim uma versão corrompida, torcida de um lugar esquecido.

            Continuava a existir o Largo da Rainha D. Amélia, praça central da vila, assim como o palácio e todos os edifícios circundantes, mas ao invés de uma pacata vila, centenas de pequenas casas erguiam-se umas sobre as outras.

            Não mais se via as cores vibrantes e vivas, pois todas elas cobriam-se de cinza e escuridão. As torres bicudas das casas centenárias multiplicavam-se, cheias de ornamentos e detalhes, empoleiradas em cima de outras casas, neste lugar, onde quer que este lugar seja, a vila crescera à velocidade da vegetação e tornara-se uma urbe estranha, gótica e retorcida.

            Estátuas e gárgulas presenteavam cada canto da praça, as varandas e as janelas, seres de mármore em vigia permanente, causando em mim o desconforto de estar no meio de seres em tudo irreais.

            O largo estava gradeado e só consigo ver os corpos a arder por entre as brechas do metal, de certa forma sinto-me mais seguro daquele lado das grades. Também no Largo se vêem estátuas.

            Inicialmente confundia-as com pessoas, presenciando a queima das pobres almas nas estacas, mas ao habituar os meus olhos à noite clara percebi que eram apenas pedra, ali não residiam almas vivas, mas sim fantasmas selados num sono de pedra.

            Tento contar uma a uma o número de estátuas, mas depressa perco a conta. Creio que devem rondar uma centena. Todas elas representam pessoas, de caras cobertas de véus, de braços de pedra fria, esticados em direcção à Serra ou ao palácio, rogando por algo.

            São estes os habitantes deste lugar, lugar a que recuso a chamar Sintra? Pedras silenciosas num local tenebroso, onde o som do mar chega e confere ao largo um ar soturno, um mausoléu, enterrado no coração de Sintra, mas igualmente nas profundezas do mar?

            Olho para cima, o coração palpitando com força, acelerado por um crescente medo, um temor desconhecido.

            Em Sintra seria aquela seria a linha por onde desce o nevoeiro gentil e cobre o pico da montanha, escondendo no seu véu o palácio e o castelo, revelando apenas as altas árvores da floresta que banham a orla da vila. Ali o nevoeiro era mais espesso, mais negro e invés de banhar, engolia para a escuridão as infindáveis torres e casas da não tão pequena vila.

            Toda aquela visão negra e grotesca, onde as próprias construções pareciam erguer-se como dedos frios na noite era observada pela Lua, pálida, sempre atenta e fixa.

            Sempre associei aquele lugar a um paraíso na Terra, onde a natureza coexistia com o homem. Lar da poesia e da música, agora era só um túmulo.

            A serra sempre fora carregada de espiritualidade, de uma energia discreta, que muitos abraçavam de bom grado. Ali era quase palpável.

            Encarnava os edifícios, as estátuas, a floresta, o nevoeiro, o vento e o próprio ar que se respira, assumindo uma identidade viva que manipulava e alterava a própria natureza do que tocava.

            Fechei os olhos, mas ao voltar a abrir estava tudo na mesma, aquele lugar era real, por mais que parecesse um sonho, e mesmo assim todo aquele lugar continha em si o irrealismo de um sonho, vivendo tal como um, pelas suas próprias regras.

            Estava preso num sonho qualquer, aliás, num pesadelo qualquer, que não o meu. Sonhado por alguém ou algo com a capacidade de nos prender nesse lugar, sonhado por algo incompreensível, cuja visão do mundo é retorcida e incompreensível, fazendo sentido só a ela.

            Olhei a Lua, parecia ainda mais um olho vivo, fixa em mim. Não havia nada de convidativo nela. Despia-me e analisava-me.

            Tremi e encolhi-me diante daquele olho pálido sem pálpebra. Ela era a rainha no céu, vigiando sem descansar a serra, tudo parecia andar à volta dela.      

            Lembrei-me do que um dia li num livro. Ao que parece muitos povos chamaram a Sintra o Monte da Lua e que ela era o astro que regia a vida espiritual da Serra.

            Vendo-a lá no alto, consegui perceber as crenças desses povos, percebi o quão incontornável era aquele olhar para aquele lugar, e percebo agora onde estou.

            Esta não é Sintra dos homens, vila romântica portuguesa. Este é o monte da Lua, sonhado e criado pelo seu olhar permanente, e eu encontro-me lá preso, tal como os corpos que ardem nas estacas.

            Engoli em seco e desviei o olhar, tinha que me esconder daquele olho. Se é que existisse algum lugar assim na serra, longe daquele luar.

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